Helena Claudia de Faria Guimarães de Sousa Pereira 

  

 

 

DO DESERTO

Pensar o Mal com Hannah Arendt


Tese de Dissertação de Mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea

sob a orientação da Exma . Senhora Professora Doutora Maria José Cantista

 

 

 

 

 

 

 F L U P – 2 0 0 0


 

 

 Agradecimentos

 

    Ao Exmo. Senhor Professor Doutor Eduardo Abranches de Soveral, coordenador deste Mestrado, e à Exma. Senhora Professora Doutora Maria Manuel de Araújo Jorge, a simpatia, as novas perspectivas para que os seus seminários tão bem souberam convidar.

     À Exma. Senhora Professora Doutora Maria José Cantista, minha orientadora, a confiança, o ânimo e a alegria que sempre soube transmitir-me em momentos difíceis; a serenidade, amizade disponível, tão determinantes para a concretização deste trabalho.

     Ao João Gomes Pinto, a cordialidade, o brilhantismo intelectual com que animou os seminários, e que se constituiu como um renovado convite a dar o meu melhor.

     À Isa, à Isabel Figueiredo, à Umbelina e à Isabel Tavares, à Isabel Braga, ao João Sousa Dias e à Joana Rodrigues, a amizade, a disponibilidade e o interesse com que acompanharam a realização deste trabalho.

     Ao Alfredo e à Eliane, à Anita Ribeirinho, à Ana Serapicos, à Becas e à Sílvia, ao Né e à Cristina, à Lídia, à Ana Maria Cunha, ao Miguel e à Joana, às tias Júlia, Clarisse e Bel, à Sofia Miguéns, à Dra. Fernanda Guerra, tantas palavras de ânimo.

     Ao Manel e à Laurinda, o carinho, a atenção, o interesse... e a estadia em Moledo (!), que inaugurou o andamento sério dos trabalhos.

     À Helena Pedro, amiga de sempre, os ralhetes com que, ternamente, censurou os meus momentos de preguiça.

     Aos meus pais, a perseverança, a dedicação, o empenhamento e o orgulho que põem em tudo quanto faço.

     Ao Miguel, a alegria, meu melhor descanso.

     Ao Manel, enfim, o amor inteiro, a paciência infinita.

 


 


 

SIGLAS UTILIZADAS

Nas obras de Hannah Arendt

 

 

 

 

RV – Rahel Varnhagen. The Life of a Jewish Woman, redigido em 1933, salvo os dois últimos capítulos, redigidos em 1938. Primeira edição – East and West Library, Grã-Bretanha,1957 (John Hopkins University Press, 1997)

OT – The Origins of Totalitarianism, Hartcourt Brace and Jovanovich, New York, 1951 (Les Origines du Totalitarisme, Vol. I – Sur l’Antisémitisme, trad. Micheline Pouteau, Paris, Seuil, 1984 ; Vol. II – Sur l’Impérialisme, trad. Martine Leiris, Paris, Seuil, 1982 ; Vol. III – Le Système Totalitaire, trad. Jean-Loup Bourget, Robert Davreu e Patrick Lévy, Paris, Seuil, 1972)

NT – Understanding and Politics, Partisan Review, Julho-Agosto, 1953

Religion and Politics, Confluence, ed. H.A. Kissinger, Cambridge, 1953 (La Nature du Totalitarisme, trad. Michelle-Irène B. Launay, Paris, Payot, 1990)

CH – The Human Condition, university of Chicago Press, Chicago, 1958 (La Condición Humana, trad. Ramón Gil Novales, Barcelona, Paidós, 1993)

BPF – Between Past and Future, Viking Press, New York, 1961(Penguin, 1993)

CC – La Crise de la Culture (trad. francesa de Between Past and Future), Paris, Gallimard, 1972

EJ – A reporter at large: Eichmann in Jerusalem, A Report on the Banality of Evil, The New Yorker, 16 de Fevereiro, 1963 (Penguin, 1994)

VP – Truth and Politics, The New Yorker, Fevereiro, 1967 (Verdade e Política, trad. Manuel Alberto, Lisboa, Relógio d’Água, 1995)

HTS – Men in Dark Times, Harcourt Brace, 1968 (Homens em Tempos Sombrios, tradução de Ana Luísa Faria, Santa Maria da Feira, Relógio d’Água, 1991)

CM – Thinking and Moral Considerations, A Lecture, Social Research, nº3, 1971 (Considérations Morales, trad. Marc Ducassou e Dider Maes, Paris,
Payot et Rivages, 1996)

VE – The Life of the Mind, Harcourt Brace & World, 1978 (La Vie de l’Esprit, Vol. I – La pensée, trad. Lucienne Lotringer, Paris, PUF, 1981 ; Vol. II – Le Vouloir, Paris, PUF, 1983)

JP – The Jew as a Pariah, Grove Press, New York, 1978

AJ – Auschwitz and Jerusalem, Deuxtemps Tierce, Col. Agora, 1991

QLP – Was ist Politik?, München, Piper, 1993 (Qu’est-ce que la Politique? tradução e prefácio de Sylvie Courtine-Dénamy, Paris, Seuil, 1995)

PHA – The Portable Hannah Arendt, Penguin, Middlesex, England, 2000

 


INDICE

 

 

    PARTE I

11
O Mal e o Problema da Justificação dos Actos Humanos

    CAP. I – Introdução

12

1. Apresentação do Trabalho

12

2. O Problema do Mal

16

3. Tradição e Modernidade

24

    CAP. II – Compreender o Sem Precedente

31

1. Totalitarismo, Ditadura, Tirania

31

2. Medo e Terror

38

3. Totalitarismo e Anti – Semitismo

 

44

    PARTE II

51

    Mal, Mundo, Liberdade

      CAP. I – As Figuras do Mal

52

1. O Mal como Necessidade

- Mundo e pré-Modernidade

53

2. O Mal como Irrealidade

- Mundo e Época Moderna

63

2.1 Da Descoberta da América a Galileu

65

2.2 Aparência e Mundo

69

2.3 Mundo e Realidade

- O problema do Sionismo e dos Direitos do Homem

75

3. O Mal como Ausência de Pensamento

88

4. Os Campos como Mal Radical

112

    CAP. II – Do Deserto

- Em jeito de Conclusão

123

    Considerações Finais

131

    Bibliografia Consultada

136

 

 


 

DO DESERTO

 

  

 

 

PARTE I

O Mal e o Problema da Justificação dos Actos Humanos

 

 

 

 

 

CAP. I

INTRODUÇÃO

 

 

 

 

 

1. Apresentação do trabalho

 

 À Sú e ao Manel

Ognuno sta solo sul cuore della terra

trafitto da un raggio di sole

ed e subito sera

Giuseppe Ungaretti

 

      O percurso que, na concretização deste trabalho, encontra o seu primeiro momento de repouso, é, a um tempo, afectivo e intelectual – tem, por isso, as limitações e as virtudes, as lisuras e os sobressaltos dos percursos em que estas dimensões não souberam (não quiseram, não puderam) separar-se. É, para o melhor e para o pior, um trabalho vivido. E por isso valeu a pena.

     O meu primeiro encontro com Hannah Arendt data de 1991 – estudava, então, as belíssimas páginas de A Condição Humana, dedicadas à temática da eternidade e da imortalidade, na cadeira de Antropologia. Dado o interesse e a curiosidade que esse estudo, na altura, despertara, foi com grande entusiasmo que, anos depois, acolhi a sugestão de trabalhar a autora em tese de mestrado, feita pela minha orientadora, a professora Maria José Cantista. Não sabia, ainda, o quanto, acontecimentos por vir, determinariam o amadurecimento da minha relação com o pensamento arendtiano, o quanto, enfim, poderia existir de providencial na coincidência...

     Originalmente pensado em três partes – Do Deserto-Do Oásis-Amor Mundi – este trabalho acabaria por ser inteiramente dedicado à primeira dentre elas, apenas. Por solicitação dos próprios percursos que fui trilhando, pelo amadurecimento da relação com a obra da autora, e, claro, por imposições de tempo, de formato até, de humildade sobretudo, acabaria por me centrar – por razões de que darei conta adiante – no problema do mal.

     Nos capítulos que dão corpo à primeira parte, proponho-me esboçar, por um lado, a moldura conceptual no âmbito da qual a noção de mal foi sendo burilada, precisamente porque, segundo Arendt, essa moldura não dá resposta às perplexidades inerentes ao fenómeno totalitário; proponho-me, por outro, perscrutando-lhes a significação, percorrer os acontecimentos que, na perspectiva arendtiana, estariam, por cristalização, na origem do sem precedentes que traumaticamente inaugura a nossa era, porquanto disso parece depender, a existir, qualquer possibilidade de regeneração.

      A segunda parte do trabalho, enfim, consiste no desdobramento desse inédito nas suas várias figuras, de que o Deserto é, afinal, metáfora, expoente – e esta é, porventura, a sua mais expressiva chancela - muda manifestação. [ 1 ]

     Há, entretanto, um implícito que anima este trabalho, e que requer, por isso mesmo, esclarecimentos adicionais.

     Não tive, como se verá, a preocupação de dedicar nenhum capítulo à biografia de Hannah Arendt; assim, à excepção dos momentos em que, para melhor compreensão de determinada temática, essa referência se me impunha, não lhe atribuí qualquer relevância. [2] E, contudo, é a própria razão de ser deste trabalho que me obriga, neste momento, a uma referência desse tipo.

     É conhecido o desinteresse da jovem Hannah pela política e pela história. Conhecido, também, é o momento em que a urgência da acção, e portanto a impossibilidade de se abster, a despertaria do seu «sono intelectual»: decorria o ano de 1933. [3] Assumiria, desde então, o dever da intervenção política, um compromisso de que só a morte a libertaria, em 1975.

     No nosso contexto, importa o seguinte: o incêndio do Reichtag, a 27 de Fevereiro de 1933, que simbolicamente inaugura a demência de que os campos de morte seriam o culminar, determinava, na vida de Arendt, o momento em que o apelo à acção já se não podia declinar. Por outras palavras, não compreenderemos o amor pelo mundo - de que a vida e obra da nossa autora apresentam o mais notável testemunho - sem antes evocarmos a experiência do seu rosto oculto, quer dizer, o assalto do deserto, a alienação do mundo, como génese desse amor que Arendt confessa tardio. E assim, se é nas condições de deserto que o Amor Mundi se revela, só pela experiência desse amor, por seu turno, pode o deserto chegar a constituir-se como tema. [4]

     A minha experiência do amor pelo mundo é, também ela, uma descoberta tardia, não anterior, pelo menos, à irrupção do amor e da morte no meu caminho. De tudo o que daí resultaria, este trabalho recolhe uma leitura possível das reflexões arendtianas sobre os avessos do Amor Mundi – reflexões que só esse Amor pelo Mundo mesmo pode solicitar - e que encontram no mal a sua mais radical e inquietante expressão.

 

 

 2. O Problema do Mal

 

«O mal no III Reich tinha perdido a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhece- a qualidade da tentação. Muitos alemães e nazis (…) devem ter sido tentados a não matar, não roubar, não deixar que os seus vizinhos partissem para a sua condenação. (…) Mas, só Deus sabe, tinham aprendido a resistir à tentação.»

Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem 

 

 

     Foi a ironia do excerto em epígrafe, o sobressalto e a dúvida que o seu conteúdo desencadeou, que de imediato fez do percurso filosófico de Arendt e das suas reflexões sobre o mal um desafio a aceitar. Que mal era esse, dito radical em alguns textos, de pálida (mas nem por isso menos aterradora) banalidade, noutros, que a tradição não previra? O que é o mal quando o já não podemos circunscrever nas categorias - da tentação, do orgulho, da fraqueza e da falta, da carência, da corrupção, da ignorância e da transgressão – que herdamos da tradição filosófica, teológica, literária? [5] Uma tradição segundo a qual, concretamente, o problema do mal aparece originalmente associado ao de Deus, constituindo uma aporia cuja solução mais fácil é a que nos aparece já com Platão, a saber, a afirmação de que Deus é somente a causa do bem e que o mal escapa, radicalmente, ao seu poder. Seria, assim, o princípio de corrupção e destruição das coisas, e por isso de uma dignidade ontológica francamente inferior.Nesta medida, portanto, sendo Deus o Bem em si mesmo, entendê-lo como origem do mal seria uma contradição nos termos. [6] E a acção, por outro lado, só pode ser motivada pelo bem, uma vez que parece absurdo supor que alguém possa querer o mal pelo mal. Assim, só a representação de um bem pode levar o sujeito a agir, donde «ninguém faz o mal voluntariamente». O mal, portanto, não é senão uma fraqueza da vontade, normalmente atribuída à ignorância. [7] É, afinal, a tese retomada por Descartes, fundador da filosofia cristã: «omnis peccans est ignorans».

     Colocada de forma aguda pela Bíblia, a temática do mal percorre-a como um fio: do Génesis ao Livro de Job, do Eclesiastes a S. Paulo, vêmo-lo em relação com o tema da transgressão e do sofrimento do justo, da condição humana e da impotência, respectivamente. [8]

     É o relato de Adão e Eva que primeiramente nos fornece a chave simbólica da origem humana da falta que, porque decorrente do uso da liberdade, dá ao mal um carácter contingente. O Livro de Job, depois, apresenta o mal na sua figura talvez mais marcada, a injustiça enquanto desequilíbrio entre o mal cometido e o mal sofrido. E é este tema, de resto, que encontramos radicalizado em Hans Jonas e na proposta que nos deixa de, ao invés de se explicar o mal a partir de Deus, compreender-se Deus a partir do mal: um Deus silencioso que, no mal radical, encontrou a marca da sua impotência. [9]

     Em S. Paulo, enfim, é evidente o tratamento do mal enquanto tentação, produto do paradoxo de uma vontade simultaneamente orientada para o bem e limitada - porque corrompida desde a origem - por uma atracção pelo mal. O pecado aparece como uma derrota, submissão da vontade a uma lei, que não a de Deus, apesar de esta estar viva na consciência, sinal da presença do divino no homem.

     Do encontro entre a religião cristã e a filosofia pagã, resultaria, entretanto, uma mudança profunda no modo de entender o Mal e a sua relação à acção divina – e em Santo Agostinho encontramos o seu maior representante, porquanto efectua a síntese entre o racionalismo platónico e a teologia da Criação e do poder divino (a que o pensamento clássico era alheio) e em torno da qual gravitará todo o pensamento cristão dos séculos posteriores.

     Assim, a consideração do mal como simples privação [10] – cuja origem se encontra na filosofia pagã - vai constituir um elemento precioso no pensamento cristão e, particularmente, no pensamento agostiniano. Com efeito, o combate mais intenso deste ex – maniqueísta vai ser o de, precisamente, insistir no facto de que o Mal não é nada de positivo, mas apenas uma privação do bem devido, um puro nada. [11] Deste modo, garantia, por um lado, a perfeição da Criação, onde o mal encontra o seu lugar - não há coisas más, mas apenas coisas a que falta o bem que deveriam ter; [12] des-responsabiliza Deus relativamente ao problema do Mal, por outro; e, finalmente, dá um sentido à diversidade das naturezas criadas e à desigual distribuição dos bens entre elas.

     O Mal é, além disso, condição de um bem superior: não só no sentido de que os defeitos das partes são condição da harmonia do conjunto, como também no de que, se é verdade que o homem pode escolher livremente fazer um bom ou mau uso das suas faculdades, elas são, em si mesmas, boas, e, sobretudo, no sentido de que o próprio pecado original é uma felix culpa, porquanto é motor da história da Salvação e da vinda do Redentor.

     Em Leibniz, que inaugura um novo período da filosofia moderna pelo estatuto que confere ao problema da irracionalidade, o mal não é um escândalo senão para o ignorante, e é integrado num esquema de explicação do Universo - nada existe que não tenha a sua razão de ser, no entendimento de Deus que, porque absolutamente bom, não poderia ter feito o mundo com outra natureza que não a Sua: o Bem está sempre e originariamente presente na ordem do mundo e, deste modo, Razão e Bondade implicam-se mutuamente. [13]

     O mal, portanto, faz parte apenas da condição humana (inclinada para o amor-próprio mais do que para o Outro, arrogante a ponto de se crer mais sábia do que o seu Criador), mas não tem, por si mesmo, uma natureza própria; é uma «falta de ser», que não tem uma «causa eficiente», mas «deficiente». [14] Não se trata, ainda assim, de pôr em causa a existência do mal, mas de rever a sua pertinência enquanto conceito. Mais longe, afinal, foi Espinoza, que reduziu o mal a uma realidade ilusória, inteiramente dependente de juízos de valor subjectivos e, por aí mesmo, arbitrários. [15]

     Relacionando o mal à História, Kant e Hegel concebem-no como momento necessário ao desenvolvimento de um processo- do «plano da Providência, no primeiro caso, do «Espírito», no outro. Em ambos os casos, portanto, mantém-se a caracterização do mal como «falta», não lhe sendo atribuída a densidade ontológica de poder transformar a natureza humana a ponto de a tornar maligna.

     Em Hegel, [16] concretamente, o mal é entendido como descontinuidade necessária ao progresso em direcção ao bem, pelo que está justificado - trata-se, no fundo, da transposição da tese de Leibniz, que distingue a vontade antecedente de Deus, que quer o Bem, e a sua vontade consequente, que o realiza pela mediação do mal. Através, pois, de uma reavaliação do negativo, a dialéctica consagra o mal como necessário à realização da liberdade na História. [17]

     Em Kant, o mal é indissociável da faculdade humana de desejar, pelo que, mesmo no que diz respeito ao mal, por ele apelidado de «radical», trata-se apenas da possibilidade geral de desobedecer à lei moral. Derivando de um desequilíbrio entre sensibilidade e razão, o mal, concretamente na figura do pecado original, é a subordinação da lei moral/vontade à sensibilidade, transfiguração enganadora do dever em móbile de satisfação.

     Reflectir sobre o mal é, ainda, prospectar os actos dos homens e as relações que se estabelecem entre eles, pelo que o problema da justificação dos actos humanos, enquanto problema político, é tão urgente quanto incontornável, neste século sobretudo, surpreendidos que fomos por acontecimentos políticos fundadores da dominação totalitária, onde formas de indizível des-razão mancharam, irremediavelmente, o tecido das relações humanas.

     Ora, são precisamente essas formas que tornam inadequada, na perspectiva de Arendt, qualquer presunção de uma natureza humana pecadora, incapaz de dominar os seus interesses: « o mal, ensinamo-lo às crianças, releva do demónio; ele encarna-se em Satanás que "cai do céu como um raio"(S. Lucas, 10, 18) ou Lúcifer, o anjo caído ("O diabo é, também ele, um anjo" – Miguel de Unamuno) cujo pecado é o orgulho ("orgulhoso como Lúcifer"), esta superbia de que só os melhores são capazes: eles não querem servir Deus, querem ser como Ele. Os maus, costumamos dizer, são movidos pela inveja [ Ricardo III e Caím] , e podem ser também guiados pela fraqueza (Macbeth). Ou, ao contrário, pelo ódio poderoso que a maldade sente perante a pura bondade [ Iago, Claggart] , ou ainda pela cobiça, "fonte de todos os males"(Radix omnium malorum cupiditas). Entretanto, o que tinha perante os olhos, se bem que totalmente diferente, era um facto inegável». [18]

     Como procurarei mostrar, o projecto da superfluidade humana não se deixa explicar, afinal, pela voracidade dos apetites de uma alma tirânica, tentada a desempenhar o papel de Deus. [19] Além disso, e como a própria autora salienta, «é um traço inerente a toda a nossa tradição filosófica que não possamos conceber um "mal radical": isto é verdade tanto para a teologia cristã, que atribuía ao próprio diabo uma origem celeste, como para Kant, o único filósofo que (...) deve ter pelo menos suspeitado da existência de um tal mal, ainda que se tenha apressado a racionalizá-lo pelo conceito de uma "vontade perversa", explicável a partir de móbiles inteligíveis». [20]

 

 

 3. Tradição e Modernidade

     Em A Crise da Cultura, pode ler-se: « A nossa tradição de pensamento político tem um começo bem determinado nas doutrinas de Platão e Aristóteles. Creio que conheceu um fim menos determinado nas teorias de Karl Marx. (...) O começo e o fim da filosofia têm em comum que os problemas elementares da política não são nunca tão distintamente revelados na sua imediata e simples urgência como quando são formulados pela primeira vez e quando conhecem o seu último relance». [21]

     Rejeitando embora, como se verá no ponto a seguir, a noção de um qualquer tipo de explicação causal para o fenómeno totalitário, não deixa de ser possível vislumbrar, ainda assim, uma relação - e uma relação que a própria autora estabelece - entre a tradição ocidental da filosofia política e o espírito da Idade Moderna, e que abarca toda a história do pensamento político, de Platão e Aristóteles a Hitler e Estaline.

     Tema central na reflexão arendtiana, avultadas que são as suas consequências nos conceitos de liberdade, acção e juízo, na filosofia ocidental, a substituição do agir pelo fazer encontramo-la já em Platão e Aristóteles. [22] Trata-se, como se verá, da consequência de uma fundamental desconfiança relativamente à possibilidade da liberdade humana se manifestar como pura espontaneidade, no âmbito da esfera pública. Mais, que liberdade e não-soberania pudessem coincidir- na medida em que a capacidade de começar é correlativa da incapacidade de controlar sequências de acontecimentos radicalmente novos que cada começo, em si mesmo, solicita- assumia-se tão absurdo, quanto perturbador. Deste modo, portanto, parece possível estabelecer um paralelo entre o fenómeno totalitário e a tradição, como se aquele levasse a cabo uma radicalização dos fundamentos da segunda. [23]

     Pela analogia que estabeleceram entre o político justo e o artesão- «Na República, o filósofo-rei aplica as ideias como o artesão o faz com as suas normas e modelos; "faz" a sua cidade como o escultor uma estátua» [24] - evitava-se o caos da política democrática que condenara Sócrates, viabilizava-se que apenas alguns dominassem as opiniões. É que o modelo do artesão implica, também, a separação entre saber e fazer- «quem sabe não tem que fazer e quem faz não precisa de pensamento ou conhecimento» [25] - e, concomitantemente, um modelo político em que a doxa e a deliberação plural são substituídas por uma relação de ordem e obediência, que está na base de todas as teorias da dominação. Ora, « O problema que originam estas formas de governo não é que sejam cruéis, já que frequentemente o não são, mas que funcionem demasiado bem. (...) Entretanto, todas têm em comum o desterro dos cidadãos da esfera pública e a insistência em que se preocupem com os seus assuntos privados e que só "o governante deve atender aos assuntos públicos». [26] Consumava-se, afinal, a oposição entre verdade e opinião que constituiu «a mais anti-socrática conclusão que Platão tirou do julgamento de Sócrates». É, de resto, esta tendência que, nos regimes totalitários, encontra o seu extremo, fim de um caminho de marginalização do juízo em favor da dedução silogística da acção.

     Esta analogia implica, ainda, que o poder do agente decorra de uma fonte externa e superior, que transcende, ela mesma, a esfera política, assegurando-se, deste modo, a superação da contingente fragilidade dos assuntos humanos. Por outras palavras, eis que se anuncia mais um tema de toda a tradição, mais um argumento especioso da metafísica: o da supremacia do Ser por relação à simples aparência.

     Com efeito, todos os esforços intelectuais dos filósofos- como dos homens de ciência- foram feitos no sentido de descobrir qualquer coisa para além das aparências, o que sempre implicou uma fuga do mundo enquanto tal e um fechamento sobre si, a procura de um fundo que não aparece sobre a superfície que o faz, e que seria causa ontologicamente mais digna do que o visível aparente. Ora, isso «não seria grave se não fôssemos senão simples espectadores, demiurgos lançados num mundo para velar pelas suas necessidades, para fruir dele, para nos distrairmos, conservando uma qualquer outra região à maneira de habitat natural. Mas, de facto, nós somos do mundo e não simplesmente no mundo». [27]

     Assim, pois, a substituição do agir pelo fazer, - com todos os ecos que gerou- garante da soberania do agente, esta consagração da categoria meios- -fins, marcariam de forma indelével todo o pensamento político ocidental.

     E, contudo, « A questão é que Platão, e em menor grau Aristóteles, em cujo critério os artesãos não mereciam a plena cidadania, foram os primeiros a propor que se manejassem os assuntos políticos e se regessem os corpos políticos à maneira da fabricação. Esta aparente contradição indica com clareza a profundidade das autênticas perplexidades inerentes à capacidade humana para a acção e a força da tentação para eliminar os riscos e perigos ao introduzir na trama das relações humanas as categorias, muito mais mornas e dignas de confiança, inerentes às actividades nas quais enfrentamos a natureza e construímos o mundo do artifício humano». [28] Pela renúncia à capacidade de acção, com a sua futilidade e insegurança, viabilizava-se um remédio para a fragilidade dos assuntos humanos.

     Assim, « A trivial noção, que já se encontra em Platão e Aristóteles, de que toda a comunidade política é formada por governantes e governados (...), fundamenta-se na suspeita que inspira a acção, mais do que no desprezo pelos homens, e procede do desejo de encontrar um substituto para a acção, mais do que da irresponsável ou tirânica vontade de poder». [29]

     Estes pressupostos chegarão quase intactos à época moderna, onde adquirirão novos contornos com a filosofia marxista que, paradoxalmente, assumindo-se conscientemente contra a tradição, se mostrou, enfim, incapaz de a abandonar: « na filosofia de Marx, que não virou do avesso Hegel, tal como não inverteu a hierarquia tradicional do pensamento e da acção, da contemplação e do trabalho, da filosofia e da política, o começo de Platão e Aristóteles prova a sua vitalidade conduzindo Marx a teses manifestamente contraditórias, sobretudo na parte da sua doutrina habitualmente chamada de utópica». [30] As mais importantes são três, a saber: «o trabalho criou o homem» (que, contra a tradição, troca o poder de Deus pelo do homem; o animal rationale pelo animal laborans; a razão pelo trabalho), contudo, o ideal da revolução consiste na sua abolição; «a violência é a parteira de toda a velha sociedade, grávida de uma nova» (tradicionalmente ultima ratio na relação entre as nações, pelo que a fórmula marxista é simultaneamente, a renúncia aos aristotélicos zoon politikon e zoon logon ekhon), contudo, com o cumprimento da luta de classes e o desaparecimento do Estado, nenhuma violência será mais possível; «os filósofos não fizeram senão interpretar o mundo de diferentes maneiras, o que importa, agora, é transformá-lo» (contra a tradição de Platão a Hegel, em que a filosofia, em rigor, não é «deste mundo», a utopia de Marx prevê a identificação do mundo dos assuntos humanos com o mundo das ideias), contudo, quando a filosofia tiver sido, ao mesmo tempo, realizada e suprimida, nenhum tipo de pensamento restará.

     Ora, « Contradições tão fundamentais e flagrantes raramente se encontram em escritores de segundo plano, onde podem ser negligenciadas. Na obra de grandes autores elas conduzem ao centro do seu trabalho». [31] No caso de Marx, dissimulam a dificuldade de tratar problemas novos nos termos da tradição, « sem a estrutura conceptual da qual o mais tímido pensamento parecia impossível». [32]

     As teses de Marx, de resto, não são sequer, em rigor, utópicas, porquanto « reproduzem as características do Estado-cidade ateniense, que era o modelo de experiência para Platão e Aristóteles e, consequentemente, o fundamento sobre o qual repousa a nossa tradição». [33] Com efeito, se Aristóteles opõe à vida política o seu ideal do lazer (s c o l h ), «a sociedade sem classes e sem Estado realiza, de uma certa maneira, o estatuto geral do lazer na antiguidade, lazer por relação ao trabalho e, ao mesmo tempo, lazer por relação à política». [34]

     Tendo em conta, ainda, o papel desempenhado pela violência na fabricação, o impacto e a dimensão que ela assume na tradição do pensamento político e na época moderna apresentam nuances a considerar. Com efeito, « A violência, sem a qual não poderia dar-se nenhuma fabricação, sempre desempenhou um papel importante no pensamento e esquemas políticos baseados numa interpretação da acção como construção; mas até à época moderna, este elemento de violência permaneceu estritamente instrumental, um meio que carecia de um fim para se justificar e limitar; (...). A sentença de Marx, "a violência é a parteira de toda a velha sociedade grávida de uma nova" (...), apenas resume a convicção da época moderna e tira as consequências da sua profunda crença de que a história "fazem-na" os homens, da mesma maneira que a natureza a "faz" Deus». [35] E é nesta perversão da acção política em feitura da história que Arendt vê a ligação entre Marx e o totalitarismo: pelo desdém de ambos relativamente à pluralidade, pelo estatuto de obstáculo ao telos da história que ambos lhe atribuem, partilham da distorção que convida ao sacrifício do indivíduo, das classes e outros grupos, a bem da espécie. [36]

     Assim, pois, « O fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais tenham perdido o seu poder sobre o espírito dos homens. Ao contrário, parece, às vezes, que este poder das velhas noções e categorias se torna tão mais tirânico quanto a tradição perde a sua vitalidade e a lembrança do seu começo se afasta». [37]

     Em suma, portanto, se o começo da filosofia política marca o desvio do filósofo por relação à política, à qual torna para impor as suas normas aos assuntos humanos, o fim chega quando o filósofo se desvia da filosofia, a fim de a "realizar" na política: « Virando do avesso a tradição no interior do seu próprio quadro, [ Marx] não se desembaraçou, verdadeiramente, das ideias platónicas, ainda que tenha tomado parte no obscurecimento do céu claro onde essas ideias, bem como outras presenças, se tinham outrora tornado visíveis aos olhos dos homens». [38]

     Entretanto, nenhum destes dados está, por si só ou no seu conjunto, habilitado a explicar a catástrofe totalitária do nosso tempo. Ela constitui-se como uma ruptura por relação às categorias de pensamento e critérios morais tradicionais, pelo que se assume como o radicalmente sem precedente.

 

 

 

 

CAP. II

COMPREENDER O SEM PRECEDENTES

 

 

 

 

 

1. Totalitarismo, Ditadura, Tirania

     Porque o mal totalitário não se deixa explicar pelo recurso à lição da história, deve distinguir-se, antes de mais, das formas mais familiares de terror que a revolução, a ditadura ou a tirania consubstanciam. [39] Com efeito, « os meios da dominação total não são somente mais radicais, mas é o totalitarismo que difere, por essência, das outras formas de opressão política que conhecemos, como o despotismo, a tirania ou a ditadura. (...) [ Começou-se] a agir segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros, que as nossas categorias utilitárias, sejam elas as da tradição, da justiça ou do bom senso, já não são nenhuma ajuda para nos conciliar com a sua linha de acção, para a julgar ou prever». [40]

     Nesse sentido, o título de As Origens do Totalitarismo não deve iludir-nos: [41] não se trata de qualquer tipo de explicação causal, que pudesse conduzir- -nos à interpretação do mal totalitário como rejeição dos limites morais tradicionais ou como patologia pessoal, emanação do génio demoníaco do líder: « Os componentes do totalitarismo constituem as suas origens, na condição de que por "origens" não se entenda "causas". A causalidade, quer dizer, o factor de determinação de um processo composto por elementos no seio do qual, sempre, um acontecimento causa outro e pode ser explicado por ele, constitui verdadeiramente, no domínio das ciências históricas e políticas, uma categoria totalmente deslocada e fonte de distorção». [42] Com efeito, é característica do fenómeno totalitário - e do universo concentracionário em particular- derrubar a categoria de meios- fins, tão querida à explicação das ciências sociais e da psicologia, a que Arendt não poupa as mais severas críticas: «Evidentemente, as categorias utilizadas pelas ciências sociais, mesmo que se tenham tornado muito estereotipadas, têm mais hipóteses de chegar a algumas intuições do que as noções dos psicólogos, nem que seja porque as primeiras são tiradas de um mundo real e não de um universo fantasmático. Mas na verdade, isso não faz, infelizmente, muita diferença. Desde que a imagem do pai invadiu as ciências sociais e que a pequena burguesia domina as disciplinas psicológicas, as diferenças que separam estes dois domínios tendem a tornar-se negligenciáveis». [43] Trata-se, antes, de compreender o absolutamente sem precedentes, ou seja, exercitar a faculdade do juízo sem o seu chão habitual de senso-comum, confiar numa «imaginação destemida» preparada para «insistir nos horrores». Menos irónica, escreve no seu artigo As técnicas da ciência social e o estudo dos campos de concentração: « Qualquer ciência funda-se necessariamente sobre um certo número de postulados implícitos, elementares e axiomáticos, que não se expõem e não explodem a não ser que os confrontemos com fenómenos inesperados, e a partir daí incompreensíveis, no quadro das categorias desta ciência. As ciências sociais e as técnicas que usaram ao longo do século passado, não constituem uma excepção a esta regra. Este artigo defende que a instituição dos campos de concentração e de extermínio - e isso refere-se tanto às condições sociais em vigor no interior dos campos como à sua função no aparelho mais vasto de terror, próprio aos regimes totalitários - poderão muito bem tornar-se nesse fenómeno inesperado, o obstáculo na via de uma compreensão adequada da política e da sociedade contemporâneas. Fenómeno que obrigará os investigadores em ciências sociais e historiadores a reconsiderar os seus a priori fundamentais e nunca postos em causa sobre a evolução do mundo e do comportamento humano». [44]

     Como se se tratasse de retomar o pedido de Salomão de um «coração inteligente»- a faculdade de imaginar que, longe de se assemelhar à fantasia, tem esse poder extraordinário de penetrar todas as trevas.

     Assim, dirá Arendt: « Se, por exemplo, aplicarmos ao fenómeno do terror totalitário a categoria de meios e fins, pela qual o terror seria um meio para manter o poder, para intimidar as pessoas, para as amedrontar, e deste modo fazê-las comportar-se de determinadas maneiras e não de outras, torna-se claro que o terror totalitário seria menos eficaz em atingir esse fim do que qualquer outra forma de terror. O medo não pode ser um guia fiável se aquilo que constantemente temo me pode acontecer independentemente do que eu faça. (...) Poder-se-ia dizer (...) que neste caso os meios se transformaram em fins. Mas isto não é, realmente, uma explicação. É apenas uma confissão, disfarçada de paradoxo, de que a categoria de meios e fins já não funciona». [45]

     O terror é um processo em espiral, cuja "finalidade" consiste em revelar a superfluidade dos seres humanos, reduzindo-os a rostos desumanizados, ao anónimo da espécie. Como se verá, os campos de extermínio confirmam ou, mais ainda, exponenciam, as leis da Natureza - cujo imperativo consiste no genocídioo - e da História [46] - cujo desenvolvimento culminaria na extinção do capitalismo e dos inimigos da classe trabalhadora - a que todo o processo se subordina. [47] Esta é, de resto, « a pretensão monstruosa e, contudo, aparentemente sem réplica, do regime totalitário que, longe de ser "sem lei", remonta às fontes da autoridade, de que as leis positivas receberam a sua mais alta legitimidade; longe de ser arbitrário, está, mais do que nenhum outro antes, submetido a estas forças sobre-humanas; longe de exercer o poder em proveito de um só homem, está pronto a sacrificar os interesses vitais imediatos de quem quer que seja à realização daquilo que pensa ser a lei da História ou a da Natureza». [48] Ora, pela subordinação a uma necessidade sobre- humana, líderes e seguidores totalitários experimentam um poder peculiar. [49]

     É, de resto, no contexto do processo gigantesco, do movimento sem fim das leis naturais e históricas, obnubilação da liberdade, da contingência mesma, em nome da ideologia determinista, que melhor se há-de compreender a noção arendtiana de "mal radical" como o telos implícito do totalitarismo, a saber, a transformação da natureza humana - [50] é que, em situação totalitária, tudo é feito para "estabilizar" os homens, para impedir qualquer acção, «de modo que o terror como lei do processo possa desenvolver-se sem obstáculo, sem ser travado por esses homens». [51] Mais tarde abandonado, [52] é certo, o conceito de mal radical merece, ainda assim, que o precisemos: nas palavras de Hannah Arendt, « O mal provou ser mais radical do que o esperado. Em termos objectivos, os crimes modernos não estão previstos pelo Dez Mandamentos. (...) Os maiores males, ou mal radical, já nada têm a ver com tais motivos pecaminosos, humanamente compreensíveis. [ ...] Trata-se de tornar os seres humanos enquanto seres humanos supérfluos (não os usando como meios para um fim, o que deixa a sua essência de humanos intocada e afecta apenas a sua humana dignidade; antes tornando-os supérfluos enquanto seres humanos). Isto acontece assim que qualquer imprevisibilidade - que, nos seres humanos é equivalente à espontaneidade - é eliminada». [53]

     Não se trata, salientemo-lo, nem de desvelar uma concepção de natureza humana desiludida, ou mais ou menos pessimista, nem de questionar o seu carácter naturalmente bom ou egoísta, [54] mas de averiguar da existência de limites para o poder humano, concretamente no que toca à plasticidade do material humano: tal como Arendt o afirma, «É a natureza humana enquanto tal que está em jogo, e ainda que pareça que tais experiências conseguiram, não mudar o homem, mas apenas destruí-lo, criando uma sociedade em que a niilista banalidade do homo hominilupus é realizada com consistência, devemos ter em mente as necessárias limitações para uma experiência que requer controlo global, de modo a mostrar resultados conclusivos.» [55]

     De que maneira, pois, pode evidenciar-se o seu carácter único- e este não é, de modo algum, « um ponto de erudição que pudéssemos tranquilamente abandonar aos "teóricos"» [56] -, sabendo embora que nem o terror político nem os campos são uma invenção totalitária, é o que se trata, agora, de esclarecer. Para tal, há-de ser possível resistir a duas tentações maiores: primeiramente, a de subsumir o estranho no familiar, para que Arendt alerta quando procede à análise da banalização do uso dos termos «imperialismo» e «totalitarismo» no discurso popular, da assimilação do totalitarismo à tirania ou à ditadura: « A afirmação desta equivalência, o reconhecimento aparente, nos acontecimentos mais recentes, de certas tendências antigas e às quais o tempo concedeu os seus pergaminhos de nobreza, comporta um motivo de consolação particular e particularmente eficaz: nada pior do que a agressividade, conhecida de nós desde que a história existe, nada pior do que a tirania que, em certo sentido, sempre representou a forma especificamente política da natureza pecadora do homem, vem ameaçar-nos. O denominador comum que recobrem termos como imperialismo e totalitarismo, quando são utilizados como termos passe-partout na sua generalidade abstracta, faz sempre papel de cortina de fumo, atrás da qual se dissimulam os acontecimentos e as formações políticas verdadeiras». [57] Além disto, deverá ainda recusar-se qualquer explicação que assimile o fenómeno totalitário a um país particular, sob pena de «minimizar a nocividade e o carácter sem precedente do totalitarismo, ou de lhe retirar a sua pertinência para a análise dos problemas políticos contemporâneos». [58] Mais ainda, numa formulação surpreendente, Arendt rejeita interpretar a Solução Final como o culminar de uma história de anti-semitismo: « A única consequência directa e não adulterada dos movimentos anti-semíticos do século XIX não foi o Nazismo, mas , ao contrário, o Sionismo, que, pelo menos na forma ideológica ocidental, era uma espécie de contra-ideologia, uma "resposta" ao anti-semitismo». [59]

 

 

 2. Medo e Terror

 

     Começarei, pois, por estabelecer a diferença, qualitativamente fundamental, entre tirania e totalitarismo, decorrente do papel que, nestas formas de governo, assumem o medo e o terror, respectivamente.

     Com efeito, se é verdade que, apoiada no medo, a tirania procura o isolamento dos seus membros e a desertificação da esfera pública, também o é que o agir, obedecendo ou evitando conflitos, continua a ser possivel, se bem que como mero princípio de sobrevivência.

     Nesse sentido, afirma Arendt: « Porque até o medo é, ainda, (de acordo com Montesquieu) um princípio de acção e, enquanto tal, imprevisível nas suas consequências. (...) O medo é o princípio dos movimentos humanos neste deserto de companhia [ neighborlessness] e solidão [ loneliness] ; enquanto tal, contudo, é ainda um princípio que guia as acções do indivíduo que, assim, retém um mínimo, amedrontado contacto com outros homens. O deserto em que este homem individual e totalmente atomizado se move, retém uma imagem, ainda que distorcida, daquele espaço que a liberdade humana requer». [60]

     Assim, se é certo que o isolamento, na tirania, desgasta a capacidade humana para a acção, a esfera privada, com todas as suas possibilidades, é ainda preservada. Ora, « Nós sabemos que o círculo de ferro do terror total não deixa espaço a uma tal vida privada, e que o autoconstrangimento da lógica totalitária destrói no homem a capacidade de experimentar e de pensar, bem como a de agir». [61]

     O terror é, ele próprio, essência da dominação totalitária: eliminando a liberdade enquanto tal, no sentido de dar cumprimento aos juízos de morte da História e da Natureza, o terror totalitário incapacita para a acção. Com efeito, «A partir do momento em que o terror é total, o próprio medo não é bom conselheiro da conduta a adoptar: porque o terror escolhe as suas vítimas sem ter em conta as acções e os pensamentos individuais, mas exclusivamente segundo a necessidade objectiva do processo natural ou histórico. Em situação totalitária, o medo está, certamente, mais espalhado do que nunca antes; mas perdeu a sua utilidade a partir do momento em que as acções que inspira já não são nenhuma ajuda para evitar os perigos temidos pelo homem. A mesma coisa é verdadeira para a simpatia ou apoio manifestados ao regime; porque o terror total não se contenta com escolher as suas vítimas segundo critérios objectivos». [62]

     Além disso, entretanto, e dado o seu carácter essencial, deve evitar-se analisar o terror como um meio de poder político [63] - o terror como essência assume, de algum modo, o estatuto de fim em si mesmo, o que significa atribuir-lhe, com Arendt, o estatuto de «instrumento incomparável». [64] É, de resto, neste sentido, que Arendt afirma: « O terror começa por apagar os limites instituídos pela lei dos homens, mas não o faz em proveito de uma qualquer vontade tirânica, do poder despótico de um homem contra todos os outros, e menos ainda para permitir a guerra de todos contra todos. O terror substitui aos limites e aos modos de comunicação entre os indivíduos uma golilha que os mantém tão apertados que ficam como que fundidos, como se fossem um». [65]

     Em suma, o terror vaporiza o próprio critério de definição da essência dos governos, a saber, a alternativa entre legitimidade e arbitrariedade, entre legalidade e ausência de lei e, assim, a dominação totalitária assume-se como o regime em que o terror é, ele mesmo, guiado pela lei, quando « o próprio termo de lei mudou de acepção: exprimia o quadro estável no seio do qual as acções e os movimentos humanos eram supostos ter lugar, era a sua condição, e veio a constituir a própria expressão desses movimentos». [66]

     Deste modo, inviabilizando a lógica binária do «nós» e «eles», o totalitarismo tem por princípio o «ninguém está a salvo», pois « Não é nem a favor dos homens nem contra eles que o terror está instituído. A sua existência tem por função fornecer ao processo natural ou histórico um instrumento de aceleração incomparável». [67] Em As Origens do Totalitarismo, Arendt reitera e aprofunda: « Os cidadãos de um país totalitário são atirados e tomados pelo processo da Natureza ou da História com vista a acelerar-lhe o movimento; como tal, não podem ser senão os executores ou as vítimas da lei que lhe é inerente. O curso das coisas pode decidir que aqueles que hoje eliminam raças e indivíduos, ou os representantes de classes agonizantes e os povos decadentes, sejam amanhã os que devem ser sacrificados. Aquilo de que tem necessidade o reino totalitário para guiar a conduta dos seus sujeitos, é de uma preparação que torne cada um deles apto a desempenhar tanto o papel de carrasco, como o de vítima. Esta preparação de duas faces, substituto de um princípio de acção, é a ideologia». [68]

     Em suma, a dinâmica totalitária do terror remete-nos para uma forma de governo radicalmente nova, com finalidades igualmente inauditas: eliminar a capacidade de acção independente dos indivíduos, pela supressão do espaço entre eles, favorecendo a criação efectiva, mais do que de um monopólio do poder público, de «Um Homem de dimensões gigantescas» onde a pluralidade e a concomitante diferença de perspectivas não encontra lugar - [69] « Abolir as barreiras das leis entre os homens - como o faz a tirania - equivale a suprimir as liberdades humanas e a destruir a liberdade enquanto realidade política viva; porque o espaço entre os homens, enquanto delimitado pelas leis, é o espaço vital da liberdade.(...) Esmagando os homens uns contra os outros (...), [ o totalitarismo] destrói a única condição essencial a toda a liberdade: simplesmente, a faculdade de se mover, que não pode existir sem espaço». [70]

     É verdade que ambos os regimes, tirânico e totalitário, aspiram à dominação de uma população privada de liberdade política. É verdade, também, que em ambos encontramos a convicção de que um só pode, e deve, velar sobre todas as actividades humanas, sejam elas quais forem. Contudo, neste ponto em que as semelhanças se acentuam, anuncia-se, irremediavelmente, a diferença crucial: « Com efeito, Nero, na sua loucura, não desejava ter frente a si senão uma só cabeça, para que a calma do seu reino não fosse, nunca mais, ameaçada por uma nova oposição (...), e sabia que isso era impossível. O ditador totalitário, ao contrário, considera-se como o único chefe do conjunto da raça humana, e não se preocupa com a oposição senão na medida em que esta deve ser eliminada, antes mesmo que ele possa reinar pela dominação total. O seu objectivo último não é a tranquilidade do seu reino, mas [ a reprodução ou interpretação] de certas leis, da natureza ou da história, que são leis do movimento e que, consequentemente, exigem que constantemente se tomem medidas e se torne (...) as alegrias seculares da dominação tirânica (...) impossíveis por definição». [71]

     O totalitarismo não tem, portanto, muito em comum com a tirania, e a mesma distinção pode estabelecer-se relativamente à ditadura, com a qual, frequentemente, se confundiu. Com efeito, Arendt não se cansa de salientar que as ditaduras não são totalitárias: o regime de Lenine apoiava o seu poder no aparelho burocrático do partido; Mussolini prestava um verdadeiro culto ao Estado; a Espanha de Franco aceitou o apoio e os limites impostos pela Igreja Católica. [72] Ora, em situação totalitária « nenhum grupo, nenhuma instituição do país permanecem intactos, não somente no sentido de que devem "articular-se" com o regime e apoiá-lo do exterior- o que já é grave-, mas no sentido literal em que, a longo prazo, não são supostos, sequer, sobreviver». [73]

     Em suma, o fenómeno é sem precedente e recusa qualquer tipificação baseada em categorias como as de causalidade, ânsia de poder ou «ismos» de qualquer ordem, e por isso « O aborrecido com os regimes totalitários não é que eles manipulem o poder político de uma maneira particularmente impiedosa, mas que, por trás da sua política, se esconda um conceito inteiramente novo, sem precedente, da realidade. Supremo desprezo pelas consequências imediatas mais, do que inflexibilidade; ausência de raízes e negligência dos interesses nacionais, mais do que nacionalismo; desprezo de uma ordem utilitária, mais do que perseguição inconsiderada do interesse pessoal; "idealismo", quer dizer, fé inquebrantável num mundo ideológico fictício, mais do que apetite de poder- -tudo isso introduziu na política internacional um factor novo, mais perturbador do que o teria sido a agressividade pura e simples». [74]

 

 

 3. Totalitarismo e Anti-Semitismo

     No que ao problema do anti-semitismo diz respeito, escreve Arendt: « Em simples termos de anti-semitismo, não podemos compreender plenamente nem o destino dos judeus da Europa, nem o estabelecimento das fábricas da morte. Ambos transcendem o raciocínio anti-semita tanto quanto os móbiles políticos, sociais e económicos que se escondem atrás da propaganda dos movimentos anti-semitas. O anti-semitismo apenas preparou o terreno e facilitou, com o extermínio dos judeus, o de outros povos». [75]

     Tendo recusado, como se viu antes, as potencialidades hermenêuticas da noção de causalidade, no que toca ao fenómeno totalitário, por que razão faz Arendt preceder o último volume de As Origens do Totalitarismo, dedicado ao Sistema Totalitário, de dois outros, um consagrado ao Anti-Semitismo, outro ao Imperialismo? Creio que, convicta embora de que nada do que acontecera anteriormente pode ser entendido como conduzindo inevitavelmente ao totalitarismo, Arendt considerava que a propagação do anti-semitismo, do imperialismo e das políticas racistas que este executou, tudo contribuiu para a possibilidade do milagre negro, que agora era preciso compreender: « Como todas estas correntes subterrâneas só se revelaram na ocasião da catástrofe final, que as juntou, teve-se tendência a assimilar o totalitarismo aos seus elementos constitutivos e às suas origens, como se toda a explosão de anti-semitismo, de racismo ou de imperialismo pudesse ser uma manifestação de "totalitarismo". Este erro é tão perigoso para a investigação da verdade histórica como para o julgamento político. A política totalitária- longe de ser simplesmente anti-semita, ou racista, ou imperialista, ou comunista- usa e abusa dos seus próprios elementos ideológicos e políticos, a ponto de a base concreta que tinha fornecido às ideologias a sua força e o seu valor de propaganda- a realidade da luta de classes, por exemplo, ou os conflitos de interesses entre os judeus e os seus vizinhos- quase ter desaparecido». [76]

     Na sua incomensurável perversidade, o totalitarismo esconde uma razão, segue uma lógica que, contudo, nos termos em que Ben-Gurion a formulou, por altura do caso Eichmann, Arendt não poderá senão rejeitar como farsa, como a mais hipócrita lição que Judeus, Árabes Israelitas e Gentios poderiam tirar da história negra que constituiu o Holocausto: «Havia a lição para o mundo não- -judeu: "queremos estabelecer perante as nações do mundo como milhões de pessoas, porque eram judeus, um milhão de crianças, por serem crianças judias, foram assassinados pelos nazis. (...) Queremos que as nações do mundo saibam (...) e se envergonhem". Os judeus da Diáspora deviam lembrar-se como o judaísmo, "durante quatro mil anos, com as sua criações espirituais, as suas lutas éticas, as suas aspirações Messiânicas" tinha sempre feito face a um "mundo hostil", como os judeus tinham degenerado até caminharem para a própria morte como cordeiros, e como apenas o estabelecimento de um Estado judeu teria permitido aos judeus ripostarem, como os Israelitas tinham feito na Guerra da Independência, na aventura do Suez, e nos quase diários incidentes das infelizes fronteiras de Israel. E se aos judeus fora de Israel tinha de ser mostrada a diferença entre o heroísmo israelita e a dócil submissão judia, isto era uma lição também para os que estavam dentro de Israel: "a geração de israelitas que cresceram desde o Holocausto" estavam em risco de perder os seus laços com o povo judeu e, por implicação, com a sua própria história. "É necessário que a nossa juventude lembre o que aconteceu ao povo judeu. Queremos que conheçam os mais trágicos factos da nossa história". (...) Em alguns aspectos, as lições eram supérfluas. Noutros, completamente enganadoras». [77]

     Com efeito, a amarga ironia com que rejeita as lições de Ben-Gurion, já em As Origens do Totalitarismo as explicara; como se verá a propósito da sua temporária ligação ao Sionismo- convicta umas vezes, outras reticente-, o que estava em causa era contestar um certo modo de conceber a história do povo judeu como «uma continuidade ininterrupta de perseguições, expulsões e massacres desde o fim do Império Romano até à Idade Média, da era Moderna até aos nossos dias, frequentemente embelezada pela ideia de que o anti- -semitismo moderno não é senão uma versão secularizada das superstições populares medievais.», [78] que Arendt considera tão falaciosa quanto o mito anti- -semita da secreta dominação do mundo, por parte dos Judeus, desde a Antiguidade.

     Assim, pois, se queremos compreender o motivo pelo qual o anti-semitismo pôde tornar-se um elemento fundamental das ideologias maiores do século XX, há que desmontar, antes de mais, algumas explicações mais clássicas: «Este livro- escreve no volume de As Origens... dedicado ao anti-semitismo- constitui uma tentativa de compreensão de factos que, ao primeiro olhar, e até ao segundo, pareceriam simplesmente revoltantes. Compreender, entretanto, não significa negar o que é revoltante e não consiste em deduzir a partir de precedentes o que é sem precedente. (...) Compreender, numa palavra, consiste em olhar a realidade de frente, com atenção, sem ideia preconcebida, e resistir à necessidade dela, qualquer que seja ou pudesse ser esta realidade». [79]

     Neste sentido, Arendt fundamentará a sua recusa das explicações até então usadas para a explicação do surgimento da máquina infernal, mostrando, por um lado, que constituem respostas improvisadas à pressa para suprir a falta de sentido e de razão dos acontecimentos sem precedente que pretendem explicar e, por outro, que todas coincidem numa fuga à realidade, numa rejeição da responsabilidade que os próprios judeus teriam tido no curso dos acontecimentos. [80]

     Assim, pois, a primeira interpretação a contestar é a que identifica o anti-semitismo com um nacionalismo latente manifesto em explosões de xenofobia; ora «Os factos mostram, infelizmente, que o anti-semitismo moderno aumentou à medida que o nacionalismo tradicional declinava; o seu apogeu coincidiu exactamente com o colapso do sistema europeu dos Estados-nação e a ruptura do equilíbrio precário dos poderes que daí resultou». [81]

     Com efeito, a história mostra (concretamente os estudos de Tocqueville relativos ao ódio do povo francês pela aristocracia, na altura da Revolução) que os homens toleram mais facilmente o poder- mesmo na figura da opressão- ao qual reconhecem alguma utilidade, do que a riqueza sem poder, associada a privilégios parasitas e intoleráveis. Assim, do mesmo modo que os aristocratas franceses foram mais odiados numa altura em que já não detinham o poder mas mantinham a sua riqueza, também o caso Dreyfus explode, não quando os judeus franceses estavam no apogeu do seu poder, «mas sob a terceira República, quando os judeus tinham quase desaparecido dos lugares importantes.», [82] e também o anti-semitismo exasperou-se «no momento em que os judeus tinham perdido as suas funções públicas e a sua influência, não conservando senão a sua riqueza». [83]

     Mais, a hipótese do nacionalismo não circunscreve o que animava a ideologia nazi, que se confessava, ela própria, um «movimento» mais importante do que o Estado.

Em suma, « O declínio geral dos judeus na Europa ocidental e central não é senão o pano de fundo dos acontecimentos que se seguiram. Este declínio não explica, por si só, os factos, do mesmo modo que a simples perda de poder da aristocracia não explica a Revolução Francesa. É preciso, simplesmente, lembrar estas leis gerais para refutar os argumentos de simples bom senso que nos levam a crer que um ódio violento ou uma revolta súbita são sempre uma reacção contra um poder imenso e abuso manifesto, e que, consequentemente, o ódio desencadeado sistematicamente contra os judeus é forçosamente uma reacção contra a sua influência e o seu poder». [84]

     Entretanto, a teoria que supõe a absoluta ausência de poder dos judeus, e que os converte nos eternos bodes expiatórios sobre os quais se faria recair toda a responsabilidade pelos conflitos generalizados e insolúveis do seu tempo, não é menos falaciosa: esta teoria «implica que o bode expiatório poderia ter sido qualquer um. Supõe a inocência perfeita da vítima, uma inocência tal que não somente a vítima não causou nenhum mal, mas também que não fez nada que tenha a mínima relação com o problema em jogo». [85] Ora, lembra Arendt, muito antes de o terror ter varrido todas as distinções entre culpados e inocentes, os judeus já estavam no centro da ideologia nazi, e uma ideologia, que tem que persuadir e mobilizar as pessoas, não pode escolher a sua vítima arbitrariamente. Escreve, em Eichmann em Jerusalém: «É falso que tenhamos sido em toda a parte e sempre essencialmente vítimas inocentes. Mas, se tal fosse o caso, seria aterrorizante, pois isso excluir-nos-ia definitivamente da história da humanidade, como todos os outros perseguidos». [86]

     Radicalmente oposta à teoria do bode expiatório, aparece a doutrina do «eterno anti-semitismo», segundo a qual nenhuma explicação especial é necessária para um ódio de mais de dois mil anos.

     O mais surpreendente, contudo, não é que esta interpretação tenha sido rapidamente adoptada pelos anti-semitas, nomeadamente enquanto álibi para o horror; «O mais surpreendente, nesta ideia de um eterno anti-semitismo, é que ela foi adoptada por um grande número de historiadores objectivos, e por um número ainda maior de judeus. É esta curiosa coincidência que torna a teoria tão perigosa e própria a gerar a confusão». [87] De algum modo, estamos perante um prolongamento e uma modernização, ainda que invertidos, do mito da eleição, ao que acresce o fenómeno da assimilação e concomitante perda de valores religiosos e espirituais: «O que se passou, de facto, é que uma grande parte do povo judeu se encontrou ao mesmo tempo ameaçada do exterior, de extinção física, e de desintegração interna. Em tais condições, era normal que os judeus, preocupados com a sobrevivência do seu povo, viessem a pensar que, antes de mais, o anti-semitismo poderia ser um excelente meio de manter a unidade do povo judeu; foi um erro desesperado mas, no imediato, consolador, uma vez que parecia que esse dito anti-semitismo eterno garantiria ao povo judeu uma existência eterna». [88]

     Em suma, se Arendt considera que a consequência directa do anti-semitismo é o sionismo e não o nazismo, é porque rejeita, simultaneamente, a causalidade e a contingência, em história. A sua desconfiança recai, assim, sobre todas as ideias geralmente aceites que pretendem explicar tendências inteiras da história.

     Reflectir sobre o mal é, então, enfrentar e assumir a novidade que o fenómeno totalitário protagoniza; é, além disso, questionar a filosofia - concretamente a filosofia política - confrontados que somos, no séc. XX, com um acontecimento que «pulverizou manifestamente as nossas categorias morais assim como os nossos critérios de juízo morais». [89]

     O fenómeno da dominação totalitária e as várias formas de des-razão que aí irrompem levarão Arendt a questionar, não só a crença no progresso das formas de relação entre os homens, [90] como a própria acção, que agora revelava o mal como sua dimensão essencial: « É aparição de um mal radical, desconhecido de nós anteriormente, que põe termo à ideia de que os valores evoluem e se transformam. Aqui, não há critérios nem políticos nem históricos, nem simplesmente morais, mas no máximo a tomada de consciência de que há, talvez, na política moderna qualquer coisa que não deveria nunca ter-se encontrado na política, no sentido usual do termo, a saber, o tudo ou nada». [91]

     É, pois, do próprio interior das relações humanas que surge a possibilidade da degenerescência, quer dizer, a possibilidade de um desregramento sistemático e pretendido; é a acção que se vira contra o que ela própria é, enquanto acção livre. [92] Com efeito, « (...) a manifestação dos princípios não se produz senão pela acção (...). Os princípios neste sentido são: a honra, a glória, o amor da igualdade – a que Montesquieu chamava virtude- a distinção ou excelência (...), mas também o medo, a desconfiança ou o ódio. A liberdade ou o seu contrário aparecem no mundo cada vez que tais princípios são actualizados .» [93] É, enfim, ao nível da própria inteligibilidade da acção, no plano do querer, que um desconhecido nos interpela, rosto obscuro a confrontar e a compreender. [94]

     «Para combater o totalitarismo – escreve Arendt- basta compreender isto: ele representa a negação mais absoluta da liberdade». [95] O modo como, em qualquer um dos casos que passarei a analisar, a negação da liberdade resulta sempre numa exclusão do mundo, mostrará como Arendt questiona, mais do que a dimensão moral do Mal, a sua dimensão política.

 

 

 

 

PARTE II

Mal, Mundo, Liberdade

 

 

 

CAP. I

As Figuras do Mal

 

 

     Na filosofia arendtiana, o mal enquanto figura da ausência de mundo e de liberdade aparece associado a três fenómenos mais gerais: o recuo – pré-moderno (de raiz grega, romana e cristã) por relação à esfera política e a concomitante valorização do pensamento, recusa da humana condição da publicidade em favor da contemplação filosófica; a valorização – moderna – do eu, da intimidade e do privado, contra a dimensão política e pública da existência humana; a dominação totalitária enquanto forma de governo aniquiladora do mundo, que reduz à ficção da ideologia.

     São estes fenómenos que passarei a tematizar.

 

  

 

 

1. O Mal como necessidade

 

  • Mundo e pré-modernidade

 

«Nada afasta alguém de maneira mais radical do mundo do que a exclusiva concentração na vida do corpo, concentração obrigada na escravidão ou na dor insuportável. (…) A única actividade que corresponde estritamente à experiência de não-mundaneidade, ou melhor, à perda do mundo tal como ocorre na dor, é o labor (…)»

Hannah Arendt, A Condição Humana

 

 

 

     Que a necessidade é um mal, os Gregos sabiam-no: « A instituição da escravatura, na Antiguidade, ainda que não nos últimos tempos, não era um recurso para obter trabalho barato ou um instrumento de exploração em benefício dos donos, mas a tentativa de excluir o labor das condições de vida do homem. O que os homens partilhavam com as outras formas de vida animal não se considerava humano (...). E a verdade é que está plenamente justificado o uso da palavra "animal" no conceito de animal laborans, para diferenciá-lo do muito discutível uso da mesma palavra na expressão animal rationale.» [96]

     Com efeito, os processos biológicos do corpo fazem-nos partilhar com os restantes organismos vivos do afã de produzir o vitalmente necessário. E se o poder do laborar, em rigor, consiste em ser capaz de produzir mais do que os bens necessários para a sua própria sobrevivência, esta «produtividade», contudo, « não é mais do que outro modo do "crescei e multiplicai-vos" no qual, por assim dizer, a própria voz da natureza nos fala.», [97] uma natureza que é indiferente à sorte da individualidade.

     De facto, Arendt não se cansa de salientar que, enquanto integrante da Zoe, o homem não aparece senão enquanto membro da espécie, pelo que não é ainda indivíduo. [98] Como se de um estádio primitivo e infra-humano do existir se tratasse, confrontamo-nos com o sem limite da indiferenciação- o «indivíduo» orgânico constituinte da Zoe, está submetido àquilo a que Arendt chama uma «circularidade natural», ou seja, o homem é verdadeiramente da natureza, pertence-lhe totalmente. [99]

     O labor é a mais natural e menos mundana das actividade do homem- «De todas as actividades humanas, só o labor, não a acção nem o trabalho, é interminável, e progride de maneira automática e em consonância com a própria vida e à margem das decisões ou propósitos humanamente intencionados». [100] E porque o processo da vida se localiza no corpo, o labor é actividade ligada à vida por excelência. Ora, é à necessidade que o homem deve ser capaz de opor o seu poder de começar, isto é, a sua contingência, porquanto a vida humana - se se quer humana - deve confrontar o natural, elevar-se acima dele e vencer: [101] « A "natureza" do homem não é "humana" senão na medida em que se abre ao homem a possibilidade de se tornar qualquer coisa não-natural, a saber, um homem». [102]

     Do mesmo modo que homo laborans e homo faber dispõem do corpo de formas inteiramente distintas- aquele em subordinação à necessidade, este em liberdade criativa- também a não-mundaneidade do laborante nada tem a ver com a fuga voluntária e activa à publicidade do mundo que as «boas obras» requerem: «O animal laborans não foge do mundo, é expulso dele enquanto está encerrado no privado do seu próprio corpo, encurralado no cumprimento de necessidades que ninguém pode partilhar e que ninguém pode comunicar plenamente». [103]

     Opor à necessidade a contingência é, finalmente, confrontarmo-nos com o problema da temporalidade: enquanto imerso nos processos naturais, sejam eles cósmicos- da physis- ou da Zoe, o ser humano está perante o sem fim, pelo que, afinal, a distinção entre processos cósmicos e terrestres não assume grande significação. Em ambos os casos, portanto, a ausência da noção de relação, que resulta da total pertença a um continuum material e atemporal. [104]

     Ora, escreve Arendt em A Condição Humana: « A vida é um processo que em todas as partes consome o durável, desgasta-o, fá-lo desaparecer, até que finalmente a matéria morta, resultado de pequenos, singulares e cíclicos processos da vida, retorna ao total e gigantesco círculo da natureza, no qual não existe começo nem fim e onde todas as coisas naturais giram em imutável e imortal repetição. A natureza e o cíclico movimento em que esta obriga a entrar todas as coisas vivas, desconhecem o nascimento e a morte tal como os entendemos».[105] O tempo, pois, aparece como uma categoria exclusivamente humana, resultado da afirmação do homem enquanto indivíduo distinto do que o rodeia. Neste sentido, a natureza está fora do tempo, imersa numa periodicidade cíclica a que Arendt chama imortalidade natural, imortal eternidade do humano e das outras espécies animais, «duração, vida sem morte nesta terra, neste mundo, tal como se concedeu, segundo o pensamento grego, à natureza e os deuses do Olimpo». [106] Já em O Conceito de História, Arendt salientava que « Todas as criaturas vivas, o homem incluído, estão contidas neste ser-para-sempre, e Aristóteles assegura explicitamente que o homem, enquanto ser natural e pertencente à espécie humana, possui imortalidade; através do recorrente ciclo da vida, a natureza assegura o mesmo tipo de ser-para-sempre tanto a coisas que nascem e morrem como a coisas que são e não mudam. "Ser para criaturas vivas é Vida" e ser-para-sempre (a e i e n a i ) corresponde a a e i g e n e V , procriação». [107]

     É neste sentido que apenas os homens são mortais, porquanto apenas eles se constituem como algo mais que membros de uma espécie, a saber, como indivíduos. Assim, pois, « A mortalidade do homem radica no facto de que a vida individual, com uma história reconhecível desde o nascimento até à morte, surge da biológica. Esta vida individual distingue-se de todas as outras coisas pelo curso rectilíneo do seu movimento, que, por assim dizer, corta o movimento circular da vida biológica. A mortalidade é, portanto, seguir uma linha rectilínea, num universo onde tudo o que se move, o faz numa ordem cíclica». [108]

     O trabalho dos nossos corpos, por outro lado, assume-se, em rigor, como um «misturar-se com», uma vez que o reverso do labor é o consumo. Por esta razão, « Quando Marx definiu o labor como "o metabolismo do homem com a natureza" (...) indicava com clareza que "falava fisiologicamente" e que labor e consumo não são mais do que duas etapas do sempre repetido ciclo da vida biológica». [109]

     Na medida em que participa do ciclo vital, o labor produz para consumir, produz apenas vida e só incidentalmente objectos, pelo que não deixa atrás de si nenhum produto durável- neste sentido, «as coisas menos duradouras são as necessárias para o processo da vida. O seu consumo apenas sobrevive ao acto da sua produção. (...) Após curta permanência no mundo, retornam ao processo natural que as produziu (...) em consonância com o sempre repetido ciclo da natureza». [110]

     É, pois, o puro funcionalismo dos bens de consumo que remete para o Eclesiastes: «Não há nada de novo sob o sol. (...) Não ficaram lembranças de outrora». [111] Este aspecto devorador e destrutivo do labor, contudo, só se evidencia de um ponto de vista outro que não o do labor mesmo, a saber, do ponto de vista do mundo, do ponto de vista da história.

     Ora, « O mundo, o lar levantado pelo homem na Terra e feito com o material que a natureza terrena entrega às mãos humanas, é formado não por coisas que se consomem, mas por coisas que se usam. Se a natureza e a Terra constituem, no geral, a condição da vida humana, então o mundo e as coisas dele constituem a condição sob a qual esta vida, especificamente humana, pode estar no lar sobre a Terra».[112] Esta passagem remete-nos, afinal, para aquele que é, de acordo com Arendt, o verdadeiro summum malum, a saber, a privação dos seres humanos do seu mundo.

     Compreender, finalmente, a pré-moderna perda de mundo (bem como a mesma perda na modernidade e contemporaneidade, como veremos nos pontos a seguir) requer, portanto, que explicitemos as relações entre natureza e história, tal como a Grécia de Homero as entendia, primeiro, e com as alterações que a partir de Parménides se anunciaram, depois; e requer, também, uma referência ao papel desempenhado, neste contexto, por Roma e pelo Cristianismo.

     A preocupação pela grandeza, tão evidente na poesia e historiografia gregas, remete-nos para a relação existente entre os conceitos de natureza e história, que de modo algum constituiu uma oposição, porquanto o seu denominador comum se encontra na preocupação pela imortalidade. Assim, pois, «A história recebe na sua memória aqueles mortais que, através de feitos e palavras, provaram-se dignos da natureza, e a sua fama perpétua significa que eles, apesar da sua mortalidade, podem permanecer na companhia das coisas que duram para sempre». [113]

     Aqui, entretanto, o paradoxo – porventura o mais relevante da cultura grega - solicita uma reflexão adicional: para os gregos, tudo era, por um lado, visto e medido por contraponto com as coisas que duram para sempre e, por outro, a grandeza humana residia, precisamente- para os gregos pré-platónicos, salientemo-lo- nas actividades mais fúteis e perecíveis, os feitos e as palavras, de que Ulisses constituiria, para sempre, a mais bela e mais eloquente expressão.

     Ora, a inicial solução para este problema foi poética, e consistiu «na fama imortal que os poetas podiam conceder à palavra e ao feito para os fazer sobreviver ao fútil momento de discurso e acção e até à vida mortal do seu agente». [114] Quer dizer, para a Grécia dos poetas, é do compromisso com a concreta realidade da esfera dos assuntos humanos, e com a vida política em particular, é da assunção da contingência, da insegurança efémera, da demasiado humana fragilidade de tudo o que à vida dos homens sobre a terra diz respeito, é, enfim, do elogio da finitude - e não do poder do pensamento que encontrou na alienação do mundo a sua grandeza - que pode surgir ainda um destino imortal.

     Com Platão, contudo, e numa viragem já preparada por Parménides e Sócrates, o desejo de imortalidade individual é abandonado: equiparando o desejo de fama imortal ao natural desejo de ter filhos, o desejo de imortalidade individual é substituído, na filosofia política de Platão, pelo da imortalidade da espécie. E é neste sentido, enfim, que o original sentido da grandeza dos mortais, distinta da dos deuses e da natureza, se perdeu: o movimento histórico, entendido como a interrupção violenta com que as actividade humanas ferem aquilo que, na ausência de mortais, seria eterno, entendido, por outras palavras, como figura do extraordinário, passara a construir-se à imagem da vida biológica.

     O velho paradoxo, enfim, «foi resolvido pelos filósofos negando ao homem não a capacidade de se "imortalizar", mas a capacidade de se medir a si mesmo e aos seus feitos contra a grandeza perpétua do cosmos, de conciliar a imortalidade da natureza e dos deuses com uma imortal grandeza dele próprio. A solução aconteceu claramente a expensas do "fazedor de grandes feitos e orador de grandes palavras"». E foi também o "fazedor de grandes feitos e orador de grandes palavras" - [115] e até a imortalidade mental experimentada pelo filósofo – que o Cristianismo sacrificou. [116] Com efeito, «A "boa nova" cristã sobre a imortalidade da vida humana individual inverteu a mais antiga relação entre o homem e o mundo, e elevou a coisa mais mortal, a vida humana, à posição da imortalidade, até então ocupada pelo cosmos». [117] Ora, com a sacralização da vida – e, mais precisamente, da vida individual, que ocupa agora o posto que tivera, outrora, a vida do corpo político - adviriam consequências desastrosas para a dignidade da vida política, no que concerne, concretamente, ao desiderato de imortalidade mundana que a caracterizou. E foi, enfim, a ênfase cristã na sacralidade da vida, que «tendeu a nivelar as antigas distinções e articulações dentro da vita activa; tendeu a considerar igualmente sujeitos à necessidade da vida presente o labor, o trabalho e a acção. Ao mesmo tempo, ajudou a libertar a actividade laboral, quer dizer, qualquer coisa que seja necessária para manter o processo biológico, do desprezo que por ela sentia a antiguidade». [118]

     A tradição romana, enfim, concretamente a filosofia estóica, resultara também numa alienação do mundo – que os romanos haviam experimentado em ruína, pelo colapso de todas as estruturas mundanas-, não pela grega transcendência do mundo das aparências, certamente, mas pela radical retirada do mundo e da própria contemplação, em direcção ao «interior» da consciência, onde as «impressões» dos objectos se formam, alheias ao mundo exterior, razão pela qual o pensador emerge, afinal, mais real que o próprio mundo. Assim, «O pensamento tornou-se techné, domínio técnico de um género particular que podemos talvez julgar o mais avançado - em todo o caso aquele cuja necessidade é mais urgente, uma vez que é com o que se retira dele que se organiza a vida. Não se trata de vida no sentido de bios theoretikos ou politikos, de vida consagrada a uma actividade particular, mas daquilo a que Epicteto chama "acção"- acção que não se faz em uníssono com o que quer que seja, que não modifica senão o eu, que se não torna manifesta senão através da apatheia ou ataraxia do "sábio", quer dizer, a recusa de reagir bem ou mal ao que quer que possa acontecer-lhe». [119] E, portanto, se algo existe, depende da decisão de o reconhecer ou não como real, sendo que esta possibilidade de «pôr- entre- parêntesis» a realidade deve-se, não à vontade, mas à natureza mesma do pensamento, da consciência, que permite às actividades mentais concentrarem-se em si próprias.

     Neste sentido, «O truque descoberto pela filosofia estóica é o de se servir do espírito de tal modo que a realidade não atinge aquele a quem ele pertence; mesmo quando este homem não se retira da realidade; em vez de se pôr, através do pensamento, longe de tudo o que está presente e próximo, ele atrai a si todos os fenómenos e a sua "consciência" torna-se um substituto completo do mundo exterior, apresentado sob a forma de impressão ou imagem». [120]

     Em suma, pois, « A queda do Império Romano demonstrou visivelmente que nenhuma obra saída de mãos mortais pode ser imortal, e essa queda foi acompanhada pelo crescimento do Evangelho cristão, que predicava uma vida individual imperecível e que passou a ocupar o lugar de religião exclusiva da humanidade ocidental. Ambos tornaram fútil qualquer luta por uma imortalidade terrena. E conseguiram tão eficazmente converter a vita activa e o bios politikos em assistentes da contemplação, que nem sequer o surgimento do secular, na Idade Moderna, e a concomitante inversão da hierarquia tradicional entre acção e contemplação, chegou para salvar do esquecimento a luta pela imortalidade, que originalmente tinha sido fonte e centro da vita activa». [121]

     Pode compreender-se, enfim, quão distantes nos encontramos, hoje, da original compreensão grega da relação entre natureza e história; remetendo para Rilke [ Berge ruhn, von Sternen überprächtigt; / aber auch in ihnen flimmert Zeit. / Ach, in meinem wilden Herzen nächtigt/ obdachlos die Unvergänglichkeit] , [122] escreve Arendt: « Se olharmos estas linhas com olhos gregos, é quase como se o poeta tivesse tentado conscientemente inverter as relações gregas: tudo se tornou perecível, excepto talvez o coração humano; a imortalidade já não é o meio no qual os mortais se movem, mas levou o seu refúgio sem lar para o coração mesmo da mortalidade; coisas imortais, trabalhos e feitos, acontecimentos e até palavras - apesar de os homens poderem ainda exteriorizar, reificar a recordação dos seus corações - perderam o seu lar no mundo; uma vez que o mundo, uma vez que a natureza é perecível, e uma vez que as coisas feitas pelo homem, uma vez vindo a ser, partilham o destino de todos os seres - começam perecendo no momento em que vieram à existência». [123]

     Ao recuperar a tensão entre o durável e o efémero, o pensamento arendtiano assume um perfil trágico que nos permite situá-lo, sem nostalgia, na melhor tradição poética e historiográfica gregas. [124]

 

 

«Sem tirar as coisas das mãos da natureza, e sem se defender dos naturais processos de crescimento e decadência, o animal laborans não poderia sobreviver. Mas sem se sentir a gosto no meio das coisas cujo carácter duradouro as torna adequadas para o uso e para erigir um mundo cuja própria permanência está em directo contraste com a vida, esta vida não seria humana.»

Hannah Arendt, A Condição Humana

     O mundo é, antes de mais, o espaço que as mãos humanas resgatam aos processos automáticos [125] e, nesse sentido, ele é, primordialmente, uma transcendência. [126] Com efeito, « Sem um mundo em que os homens nasçam e morram, só existiria a imutável e eterna repetição, a imortal eternidade do humano e das outras espécies animais. (...) Só dentro do mundo humano o cíclico movimento da natureza se manifesta como crescimento e decadência». [127]

     As coisas do mundo estão, também elas, condenadas a decair, mas o seu fim não é a destruição inerente às coisas de consumo, até porque podem substitui-se com a passagem das gerações, e assim, possuem uma «relativa independência por relação aos homens que as produzem e usam, [ uma] "objectividade" que as faz suportar, "resistir" e perdurar, pelo menos por um tempo, às vorazes necessidades e exigências dos seus fabricantes e usuários. Deste ponto de vista, as coisas têm a função de estabilizar a vida humana». [128]

     Ora, o mundo, na sua permanência e durabilidade, é a condição da existência humana enquanto, precisamente, humana. «Nós somos do mundo- -escreve Arendt- e não apenas no mundo»-, o que implica, em igual medida, que, tal como a existência humana não é possível sem coisas, também as coisas se constituem como condição dessa existência, sob pena de se reduzirem a um não-mundo de artigos não relacionados.

     Assim, pois, « Se o animal laborans precisa da ajuda do homo faber para facilitar o seu labor e aliviar o seu esforço, e se os mortais necessitam da sua ajuda para erigir um lar sobre a Terra, os homens que actuam e falam precisam da ajuda do homo faber na sua mais elevada capacidade, isto é, da ajuda do artista, de poetas e historiadores, de construtores de monumentos ou de escritores, já que sem eles o único produto da sua actividade, a história que estabelecem e contam, não sobreviveria. Com o fim de que o mundo seja o que sempre se considerou que era, um lar para os homens durante a sua vida na Terra, o artifício humano há-de ser o lugar apropriado para a acção e o discurso. (...) Não é necessário escolher entre Platão e Protágoras, ou dizer se há-de ser o homem ou um deus a medida de todas as coisas; o certo é que a medida não pode ser nem a acossante necessidade da vida, nem o instrumentalismo utilitário da fabricação e do uso». [129]

     Este mundo, portanto, não é idêntico à Terra ou à Natureza: [130] « antes está relacionado com os objectos fabricados pelas mãos do homem, assim como com os assuntos dos que habitam juntos no mundo feito pelo homem. (...) O mundo, com tudo o que está no meio, une e separa os homens ao mesmo tempo. A esfera pública, tal como o mundo comum, junta-nos e, não obstante, impede que caiamos uns sobre os outros, por assim dizer». [131]

    Ser privado de mundo equivale, consequentemente, a ser privado do espaço da aparência, onde cada um é visto e ouvido por todos, equivale, nas palavras de Heráclito, a ser algo que «passa como um sonho, que não tem qualquer realidade». [132]

 

2.1 Da descoberta da América a Galileu

     Ora, três eventos essenciais, considera Arendt no último capítulo de A Condição Humana, estão no limiar da idade moderna e da perda de mundo que lhe esboça o perfil: a descoberta da América, o movimento da Reforma, a invenção do telescópio.

     Mais do que pela abertura do Novo Mundo, da secularização ou da confirmação da teoria copernicana, que estes acontecimentos, respectivamente, determinaram, é o seu protagonismo na moderna alienação do mundo que a Arendt interessa esclarecer.

     Neste sentido, o que de mais significativo se pode recolher da descoberta da América, consiste na possibilidade que ofereceu ao ser humano de conceber a Terra como objecto, que circunscreveu, cuja lonjura reduziu às dimensões da palma de uma mão, e da qual, portanto, pôde alienar-se, em ordem à sua descrição que indicia, afinal, a sua conquista. Com efeito, «Nada poderia ter sido mais estranho ao propósito dos exploradores e circumnavegantes da primeira Época Moderna do que este processo final; eles iam ampliar a Terra, não reduzi-la, e quando se submeteram ao apelo do distante, não tinham a intenção de abolir a distância. Só a sabedoria da percepção tardia vê o óbvio, que nada pode permanecer imenso se se pode medi-lo, que toda a panorâmica junta partes distantes, e portanto estabelece a contiguidade onde dantes imperava a distância». [133] E assim, os mapas e as cartas de navegação antecipavam as invenções posteriores, que reduziriam a Terra a um pequeno espaço ao alcance da mão.

     A Reforma, por seu turno, porquanto marcou o início do processo de expropriação de propriedades, é também figura da alienação: privando milhões de indivíduos do seu «lugar no mundo», preparou o terreno às expropriações futuras e à acumulação de riqueza típicas da economia capitalista. Com efeito, é na Reforma que radica a depois irremediável indiferenciação entre as esferas privada e política, que se deveu ao aparecimento do social – é na sequência das expropriações, e da concomitante substituição da família e da propriedade pela solidariedade social, que o modelo orgânico se instala, esboçando condições segundo as quais a liberdade política não pode existir: «A nova classe laboral (...) não só permaneceu sob a urgência da necessidade, como ao mesmo tempo ficou alheada de todos os cuidados e preocupações que não eram resultado imediato do próprio processo da vida». [134]

     Com a expropriação, em suma, as urgências inerentes ao processo vital, e a essencial homogeneização que decorre da redução da actividade humana à luta pela sobrevivência, esboçam as condições necessárias à emergência da sociedade de massas. « A ascensão do social – escreve Arendt em A Condição Humana – determinou o declínio simultâneo das esferas pública e privada. Mas o eclipse de um mundo comum público, tão determinante na formação do solitário homem de massa e tão perigoso para a formação da mentalidade a-mundana [ worldless] dos modernos movimentos ideológicos de massa, começou com a muito mais tangível perda de um lugar privadamente possuído no mundo». [135] Com a ascensão do social, portanto, a tónica deslizou do mundo para a natureza, e é este deslize, afinal, que está na base das críticas de Hannah Arendt à filosofia de Marx. [136]

     Surpreendente, entretanto, é «a semelhança na mais distante divergência. Porque esta alienação do interior mundano nada tem que ver, em intenção e conteúdo, com a alienação da Terra inerente à descoberta e posse da Terra. Mais ainda, a alienação do interior mundano (...) não está só presente na nova moralidade que surgiu das tentativas de Lutero e de Calvino de restaurar a inflexível ultramundaneidade da fé cristã; também está presente, se bem que a um nível completamente diferente, na expropriação do campesinato, que foi a imprevista consequência da expropriação da propriedade da Igreja e, como tal, o maior factor do derrube do sistema feudal». [137]

     A invenção do telescópio, finalmente, para além de demonstrar quão fundamentado podia estar, afinal, o receio relativamente aos dados dos sentidos, abria caminho ao ponto de vista universal da ciência moderna, definia a necessidade de se encontrar um ponto de vista fora do universo, um ponto de vista que reduz a Terra, também ele, a apenas um objecto mais. E a filosofia cartesiana, afinal, constituiria a resposta filosófica ao padrão absoluto introduzido pela ciência, e completaria a retirada arquimediana com o recolhimento ao eu, substituto possível da certeza -perdida - de um mundo à medida dos nossos sentidos. Por outras palavras, o cepticismo metódico do omnibus dubitandum est cartesiano, partilha com as ciências universais a desconfiança relativamente à fiabilidade dos sentidos e, portanto, a assunção de que o que é verdadeiro e inquestionável deve a sua descoberta ao pensamento. [138] Em suma, «O moderno ponto de vista do mundo astrofísico, que começou com Galileu, e o seu desafio à suficiência dos sentidos para revelar a realidade, deixou-nos um universo de cujas qualidades só conhecemos a maneira como afectam os nossos instrumentos de medida. (...) No lugar de qualidades objectivas noutros mundos encontramos instrumentos, e em vez da natureza ou do universo – copiamos as palavras de Heisenberg – o homem só se encontra consigo mesmo». [139]

     Ora, e este é um ponto crucial no nosso percurso, uma vez que já não é o mundo, nem sequer a relação do sujeito ao mundo ou dos sujeitos entre si, que está em causa, a filosofia cartesiana introduz um ponto de vista que proclama a vida e a sua fertilidade como o bem mais precioso. Reflectindo o espírito da dúvida, a filosofia moderna manifesta-se como perda de confiança na crença cristã da imortalidade individual e como reconhecimento de que a verificação da realidade e da verdade depende dos processos cognitivos eles mesmos. É neste sentido que «a questão da certeza seria decisiva no desenvolvimento da moralidade moderna. O que se perdeu na Época Moderna não foi a apetência pela verdade, a realidade, a fé, nem a concomitante e inevitável aceitação do testemunho dos sentidos e da razão, mas a certeza que anteriormente vinha com elas. Na religião não foi a crença na salvação ou no mais além o que imediatamente se perdeu, mas a certitudo salutis, e isto ocorreu em todos os países protestantes em que a queda da Igreja católica tinha eliminado a última instituição que, onde a sua autoridade não foi desafiada, se manteve entre o choque da modernidade e as massas de crentes». [140]

 

2.2 Aparência e Mundo

     Em A Vida do Espírito, escreve Arendt: « O mundo onde nascem os homens engloba um grande número de coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, provisórias e eternas que têm todas em comum aparecer e, por aí mesmo, serem feitas para se ver, ouvir, tocar, serem sentidas e saboreadas por criaturas sensíveis dotadas de sentidos apropriados». [141] Estar vivo, portanto, significa ocupar um mundo em que aparecemos uns aos outros, é ser movido pela necessidade de nos mostrarmos. Com efeito, « Na vida de todos os dias, como para o estudo científico, o objecto é determinado pelo seu breve intervalo de plena aparência, a sua epifania. A escolha [ do que é uma coisa viva] , fundada no critério único de cumprimento e de perfeição da aparência, seria completamente arbitrária se a realidade não fosse, antes de mais, de natureza fenomenal». [142]

     É neste sentido, de resto, que o mundo das aparências é anterior a qualquer região que o filósofo possa eleger como lugar onde se sente em casa, uma vez que « Quando o filósofo se despede do mundo oferecido aos nossos sentidos e faz meia-volta (periagoge, em Platão) em direcção à vida do espírito, é ainda àquele que ele pede um fio condutor que lhe revelará a verdade subjacente. Esta verdade- a letheia, o que é desvelado (Heidegger)- não se concebe senão como uma aparência mais, um outro fenómeno escondido na origem mas sentido como de ordem superior, e atesta por isso a predominância persistente da aparência». [143]

     É bem diferente, contudo, a perspectiva que a tradição nos oferece. Com efeito, à mais antiga das questões colocada tanto pela filosofia como pela ciência, a saber, «O que é que faz com que qualquer coisa ou qualquer pessoa, eu incluído, apareça, e o que é que o faz aparecer com esta forma e este comportamento e não outro?», [144] a tradição filosófica respondeu com a noção de uma causa, de grau ontologicamente mais alto do que aquele que reconhecia à aparência.

     Além disso, e mais recentemente, a ideia de um progresso sem fim e o concomitante e vantajoso funcionalismo que favorece, não contraria a dicotomia entre Ser verdadeiro e simples aparências, convertendo estas na condição necessária aos processos essenciais que se desenvolvem no organismo vivo.

     Se há erro, entretanto, não é puramente arbitrário: uma vez que as aparências não só não revelam de si mesmas o que está por trás, como, além disso, dissimulam, não é linear considerar ilegítima a suposição dessa função de protecção como a mais importante. Ainda assim, Arendt considera haver, realmente, um erro: «O erro elementar de todas as teorias que se apoiam na dicotomia Ser/Aparência é evidente e foi muito cedo descoberto pelo sofista Górgias, que o resumiu num fragmento do seu tratado agora perdido Sobre a natureza e o não-ser – refutação, ao que parece, da filosofia eleática: "Ser não tem nada de manifesto uma vez que isso não aparece (aos homens: dokein); parecer (aos homens) é frágil, porque não consegue chegar a ser". (...) Dir-se-ia que o Ser, uma vez tornado manifesto, prevalece sobre as aparências- mas ninguém, até agora, conseguiu viver num mundo que não se revela de si mesmo». [145]

     Nesta medida, « Será possível que as aparências existam, não para as necessidades da vida, mas, ao contrário, que a vida esteja aí para o melhor bem das aparências? Uma vez que vivemos num mundo que agarramos enquanto aparece, não seria mais plausível que o que ele tem em si de significativo e de pertinente se situe, precisamente, à superfície?». [146]

     Os trabalhos de Adolf Portmann oferecem, a este respeito, uma nova perspectiva; em poucas palavras, aventam a hipótese de que o não-aparente tenha o papel de sustentar, engendrar e manter as aparências, donde a inversão das prioridades levada a cabo pela sua «morfologia», e que o próprio formula nestes termos: « Não é o que é uma coisa, mas a maneira como aparece, que deve orientar a investigação». [147]

     Com efeito, a sua investigação reclama, pela tónica que põe na superfluidade da ostentação daquilo a que chama as «aparências autênticas», que se interprete a variedade animal e vegetal em termos que vão para além do funcional. Estamos perante estruturas visuais (a penugem de um pássaro, por exemplo), que têm como finalidade única «produzir um certo efeito no olho do amigo ou inimigo... O olho e o objecto examinado formam um todo disposto segundo regras tão rigorosas quanto a nutrição ou os órgãos digestivos», [148] por oposição às quais Portmann nos fala de «aparências inautênticas», aquelas que só se manifestam quando se manipulam as primeiras (é o caso das raízes das plantas ou dos órgãos internos de um animal).

     Ora, se as «aparências autênticas» se apresentam numa variedade quase infinita, as « aparências inautênticas» chamam a atenção pela sua flagrante semelhança. De algum modo, Arendt entende, na linha de Portmann, que o exterior tem por função dissimular o equipamento funcional do processo da vida, pelo qual todos nos assemelharíamos, e, assim, « Estas descobertas sugerem que o lugar dominante da aparência exterior deixa supor uma actividade espontânea, ajustando-se ao carácter puramente receptivo dos nossos sentidos; tudo o que vê, quer ser visto, tudo o que ouve, grita para se fazer ouvir, tudo o que pode tocar avança para ser tocado. É, na verdade, como se toda a coisa viva- além do facto de que a sua superfície é feita para aparecer, digna de ser vista e destinada a aparecer aos outros- fosse movida por uma necessidade de aparecer, de se integrar no mundo das aparências apresentando, não o seu "eu interior", mas o indivíduo que ela constitui». [149]

     A condição humana da mundaneidade, portanto, o facto de sermos tão feitos de mundo, consagra-nos sujeito que vê, ouve e toca, tanto quanto objecto para o Outro, que é garante da sua realidade «objectiva». Por esta razão, «Aquilo a que chamamos habitualmente "consciência" (...) não bastaria nunca para garantir a minha realidade». [150] Em Rahel Varnhagen, das obras de Arendt- -porventura injustamente- a menos valorizada, escreve: «Desejos que não são de antemão marcados pelo destino, que são apenas expressões, convertidas em fantasias, de pretensões semi-infantis à felicidade; sonhos de juventude, não importa a que ponto complementos característicos da frustração e descontentamento, ou protestos legítimos contra obstáculos ao desenvolvimento ou falta de alegrias, dissolvem-se, vaporizam-se ao primeiro impacto da vida, o impacto que vem com a experiência real, com a paixão ligada a algo específico. Por outro lado, qualquer resposta ao apelo apaixonado que vem directo a nós do grande, vasto mundo, que é dirigido a nós em particular, confirma-nos – esta resposta absorve e concentra toda a fantasmagoria de desejos num dos três desejos do conto de fadas, que tem de ser realizado se não quisermos pensar-nos para sempre infelizes». [151]

     Neste sentido, consequentemente, «A nossa sensação de realidade depende por inteiro da aparência e, portanto, da existência de uma esfera pública. (...) O termo "público" significa o próprio mundo, enquanto é comum a todos nós e diferenciado do nosso lugar possuído privadamente nele». [152]

     Neste mundo em que entramos quando nascemos e que, com a morte, deixamos para trás, «Ser e Aparecer coincidem», [153] e é significativamente adequada, pois, a frase de W.H. Auden com que Arendt abre a secção «Aparência», em A Vida do Espírito: « Julga-nos Deus pelas aparências? Tenho bem a impressão que sim». [154]

     Ora, « A vita activa, vida humana até onde se encontra activamente comprometida em fazer algo, está sempre enraizada num mundo de homens e coisas realizadas por eles, que nunca deixa nem transcende por completo. Coisas e homens fornecem o meio ambiente de cada actividade humana que seriam inúteis sem essa situação. (...) Nenhum tipo de vida humana é possível sem um mundo que, directa ou indirectamente testemunha a presença de outros seres humanos». [155] O mundo, consequentemente, não se me apresenta nunca enquanto tal, dependente que está da comunicação dos diferentes e particulares pontos de vista que se formam a seu respeito, e é neste sentido, afinal, que o mundo só é visível enquanto mundo comum. Por esta razão, enfim, se há uma identidade da humanidade, ela manifesta-se enquanto diversidade de indivíduos e povos - [156] «Não é o homem mas os homens que habitam esta terra»- e é esta pluralidade de raiz que o projecto de uniformização do humano põe em perigo.

     Indivíduo e mundo, portanto, enriquecem-se e complementam-se mutuamente: daquele, depende a humanidade do segundo e, deste, a mundaneidade do primeiro: «A experiência tinha tomado o lugar do seu não-ser; agora sabia: A vida é assim». [157]

     Qualquer estratégia de retirada ou fuga do mundo deve ser, pois, cuidadosamente equacionada, sob pena de estarmos renunciando à nossa humanitas. [158] Com efeito, «O mundo e os homens que o habitam são duas coisas. O mundo estende-se entre os homens e este "entre"- bem mais que os homens ou o homem - é hoje o objecto da maior preocupação». [159] É esta, precisamente, a questão que se coloca de cada vez que o indivíduo se retira para a invisibilidade do pensar e do sentir, de cada vez que, pervertido o mundo em não-mundo do totalitarismo, o indivíduo se refugia numa «emigração interior», porquanto «nenhum ser humano pode isolar-se completamente; será sempre devolvido ao mundo se tem qualquer esperança nas coisas que só o mundo pode dar: "coisas vulgares, mas coisas que temos que ter". No final, o mundo tem sempre a última palavra, porque podemos apenas fazer introspecção em direcção ao interior do nosso eu, mas não para fora dele outra vez». [160]

 

2.3 Mundo e realidade

 

- a questão do Sionismo e dos Direitos do Homem

     A questão está, pois, em saber « qual é a quantidade de realidade que é preciso manter num mundo tornado inumano para que a humanidade não fique reduzida a uma palavra vã ou a um fantasma (...), até que ponto continuamos obrigados para com o mundo, mesmo quando fomos perseguidos ou nos retiramos dele». [161]

     Ora, uma vez que a retirada do mundo equivale a uma recusa em responder por ele e pelo mal que, nele, tem lugar; uma vez que, pela perda de mundo que cada retirada pessoal implica, somos co-responsáveis pela sua perversão, afigura-se paradigmática a questão do pária e as concomitantes formas de relação ao mundo que, nesta condição, podem ainda estabelecer-se.

     Arendt, ela própria judia (ainda que despertada para essa realidade sobretudo a partir de 1933 e, irremediavelmente, em 1943, quando pela primeira vez ouve falar de Auschwitz e já marcada, nessa altura, pela experiência dos sem pátria), só com o Holocausto vive a revelação da sua judeidade, que a assalta irreversível. Poderia, então, tomar para si as palavras de Lazare: «Não me sentia judeu. Hoje sinto que devo sê-lo (que é preciso que o seja), que devo regressar ao lugar donde saí e que devo recriar a minha pessoa intelectual e moral. Pertenço a um grupo, vou voltar a entrar nele, servi-lo, servindo a humanidade». [162]

     É o sentido que lhe atribuiu Bernard Lazare que Arendt retoma no seu conceito de pária; como tal, estamos perante uma categoria não somente sociológica mas, sobretudo, política, designando três tipos, três distintas possibilidades de relação ao mundo: em primeiro lugar, designa o indivíduo que permanece à margem da sociedade- o arrivista; depois, aquele que se adapta à sociedade ao preço de uma situação degradante- o assimilado; finalmente, o indivíduo que, assumindo-se como pária, desenvolve um combate sem tréguas pela justiça- o pária consciente.

     Dois traços caracterizam a situação de pária para um povo: o isolamento/ reagrupamento forçado e a ausência de direitos do indivíduo. Uma vez que Arendt faz remontar ambos os fenómenos à emancipação dos judeus, no século XIX, impõe-se que descrevamos brevemente essa nova situação, em ordem ao melhor esclarecimento deste aparente paradoxo.

     Em Rahel Varnhagen, escreve: «Os judeus não tinham senão o mais pobre entendimento da nova era e da nova geração na qual Herder tinha tido uma influência crucial. Esta incompreensão era manifesta não só nos poucos "Pais Judeus", mas em quase todo o judeu individual, com poucas excepções. Só compreendiam uma coisa: que o passado se colava inexoravelmente a eles, enquanto grupo; que só o podiam sacudir enquanto indivíduos. Os truques usados pelos indivíduos tornaram-se mais subtis, os caminhos individuais muito mais numerosos, à medida que o problema pessoal se intensificou; os judeus tornaram-se psicologicamente mais sofisticados e socialmente mais engenhosos. A história dos judeus alemães evaporou-se por um breve período- até ao primeiro Decreto de Emancipação de 1812- na história de indivíduos que conseguiram escapar». [163]

     O que sobressai da análise do segundo volume de As Origens do Totalitarismo, consagrado ao anti-semitismo, é a afirmação arendtiana de que a emancipação teria conduzido a novas condições de exclusão: «Os judeus sentiam simultaneamente o arrependimento do pária, de não se ter tornado arrivista, e a má consciência do arrivista, que traiu o seu povo e trocou a igualdade de direitos por privilégios pessoais. Uma coisa é certa: se se queria evitar todas as ambiguidades da vida em sociedade, era preciso resignar-se ao facto de que ser judeu consistia em pertencer ou a uma classe superior privilegiada, ou a uma massa desfavorecida». [164]

     Assim, pois, tendo uma boa parte dos judeus abandonado o particularismo ritual, nem por isso conseguiu integrar-se em nenhuma das novas estratificações sociais do século XIX; a assimilação, por outro lado, convida a uma situação impossível em que o indivíduo se esforça por, ao mesmo tempo, ser e não ser judeu. A título individual, entretanto, o judeu permanece fora da sociedade, mas esta situação reflecte, por si mesma, o estatuto político do próprio povo. Cada vez mais, a questão da judaidade é reduzida a um problema individual que «assombra a vida privada» [165] dos indivíduos: «O adágio "um homem fora do lar, um judeu em casa" tornou-se uma amarga realidade. (...)Como não parecer um "judeu em geral", permanecendo judeu? Como esforçar-se por não ser como os judeus e mostrar, entretanto, com clareza suficiente que se é um deles? O judeu médio, nem arrivista nem "pária consciente" (Bernard Lazare), podia, quando muito, acentuar uma alteridade sem significação. (...) Os judeus assimilados, meio orgulhosos, meio envergonhados de serem judeus, pertenciam visivelmente a esta categoria [ de homens que a sociedade simultaneamente admirava e punha de lado] ». [166]

     A assimilação é, assim, um fenómeno social liminarmente rejeitado por Arendt: [167] « Enquanto o D. Quixote continua cavalgando para conjurar um mundo possível, imaginário, a partir do mundo real, é apenas um tolo, e talvez um tolo feliz, talvez até um tolo nobre, quando se compromete a conjurar do mundo real um ideal definido. Mas sem um ideal definido, sem almejar uma imaginária revisão do mundo, ele tenta apenas transformar-se a si próprio numa espécie de possibilidade vazia do que poderia ser, torna-se apenas um "sonhador tolo" e, ainda por cima, oportunista, que tenta destruir a sua existência em troca de algumas vantagens». [168]

     Ainda na linha de Lazare, [169] crê que a assimilação não só não dá uma resposta consistente às injustiças sofridas pelos judeus, como tolda as realidades políticas. A linguagem a recuperar é, assim, a que um retorno à época dos Macabeus nos ensinaria: «Não é a linguagem dos mártires que não conhecem senão a glória de Deus, nem a dos desesperados que não possuem senão a triste coragem do suicídio. É antes a linguagem do que é hoje a vanguarda de um povo, a que pensa tomar amanhã a frente das reivindicações políticas». [170]

     Creio, finalmente, estarem agora reunidas as condições que possibilitam a cabal compreensão de duas asserções distintas de Arendt: primeiramente, a convicção de que, se atacado enquanto judeu, é enquanto judeu que um indivíduo deve defender-se; a seguir, a crítica que dirige aos Direitos do Homem.

    Partindo da primeira, esclarece-se a ligação de Arendt ao sionismo, pela mão de Kurt Blumenfeld, bem como os motivos que a levaram a demarcar-se daquele movimento. [171]

     Com efeito, o que inicialmente atrai Arendt ao Sionismo é o facto de este movimento, como ela própria, rejeitar a visão apologética da história judaica, quer dizer, o facto de propor uma leitura segundo a qual o povo judeu é convidado a assumir-se, já não como vítima, mas como responsável, construtor da sua própria história, autor do seu destino, comprometido na acção política (já em Rahel Varnhagen, tinha escrito: «Se nos limitarmos a aceitar o destino, se pura e simplesmente não agirmos, conseguimos uma segurança que nos permite oferecer a mesma resistência passiva a qualquer infortúnio»). [172] E é esta leitura, ainda, que permite compreender a comoção e o entusiasmo com que a nossa autora se refere à sublevação armada dos judeus do gueto de Varsóvia: «Aquilo por que os judeus do mundo inteiro, e antes de todos eles, os do yishouv da Palestina, tinham reclamado há anos, a saber, a constituição de um exército judeu, foi subitamente realizado por aqueles de que menos esperávamos que agissem, e que não tinham outra saída senão ir povoar, no futuro, os asilos e os sanatórios - mortificados na carne e no espírito - na qualidade de beneficiários da caridade do judaísmo mundial. Aqueles que, no ano anterior, desesperados, clamavam socorro e eram vítimas sem defesa da barbárie, que estavam condenados a terminar um dia a sua existência na qualidade de beneficiários da caridade estrangeira, decidiram-se, de um dia para o outro, a ajudar-se a si próprios e, em todo o caso, a ajudar o povo judeu». [173]

     Ora, a possibilidade da constituição de um exército judeu – pela qual Arendt sempre se bateu - foi, precisamente, um dos pomos da discórdia, que se revelaria irreversível, entre Arendt e o movimento sionista. Em 1942, escreve: «Desde as negociações de Herzl com os ministros da Rússia czarista ou do Império alemão, até a essa carta memorável que um Lorde inglês, Lorde Balfour, escreveu a um outro Lorde inglês, Lorde Rothschild, e que tinha por objecto o destino do povo judeu, os dirigentes sionistas puderam, sem grande suporte do povo judeu, estabelecer negociações em favor deste povo com homens de Estado que, também eles, agiam pelos seus povos e não enquanto representantes dos seus povos. (...) Os esforços em favor de um exército judeu mostram muito claramente que as simpatias e diligências das "personalidades influentes" não devem, uma vez mais, ser levadas a sério. Enquanto um movimento popular não emergir dos diferentes comités e comissões políticas, não teremos a mínima hipótese». [174]

     Ora, o Sionismo sempre tinha seguido, na perspectiva de Arendt, uma linha- que considerava ser indispensável aos seus objectivos- de negociação com os grandes poderes e, mesmo, com os governos anti-semitas, concretamente com os nazis. Chocada com o cinismo e o perigo de uma colaboração sustentada em «interesses mútuos» (os sionistas, o de quererem os judeus europeus na Palestina; os nazis, o de se quererem ver livres dos judeus), moveu-lhe uma crítica sem paralelo, que culminaria com o desacordo, igualmente violento, relativamente à questão do conflito judaico-árabe. [175]

     Com efeito, a partir de 1944, a cisão entre Arendt e aquele movimento não podia, não mais, escamotear-se: «A partir da sua última convenção anual que se desenrolou em Atlantic City em Outubro de 1944, os sionistas americanos, tanto de esquerda como de direita, adoptaram unanimemente a reivindicação de uma Commonwelth judaica, livre e democrática, compreendendo "toda a extensão da Palestina, sem divisão nem diminuição". Trata-se de uma viragem na história do sionismo porque isso significa que o programa revisionista, tão longa e amargamente repudiado, finalmente triunfou. A resolução de Atlantic City vai mesmo mais longe do que o programa Biltmore (1942), em que a comunidade judaica tinha dado à maioria árabe direitos próprios da minoria. Desta vez, os árabes não são, pura e simplesmente, mencionados na resolução. (...) Parece admitido implicitamente que só razões de oportunismo tinham anteriormente impedido o movimento sionista de enunciar os seus objectivos últimos». [176]

     Por razões políticas, Arendt comprometera-se com o sionismo; por razões políticas, abandoná-lo-ia, sem retorno; compreender a «dissidência» de Arendt passa, assim, por esclarecer as objecções políticas que colocava aos conceitos de «Estado-nação» e de «soberania nacional», bem como as alternativas que propôs.

     O debate sobre o futuro da Palestina estruturava-se em torno de duas concepções políticas opostas: a que configurava a Palestina enquanto pátria judaica, e a que defendia a constituição de um Estado judaico soberano.

     Uma vez mais a contra-corrente, escreve Arendt: «Os intelectuais judeus de esquerda, que há relativamente pouco tempo olhavam para o Sionismo como uma ideologia para os fracos de espírito, e viam a construção de uma pátria judaica como um empreendimento sem esperança que eles, na sua grande sabedoria, tinham rejeitado antes mesmo que começasse; os homens de negócios judeus, cujo interesse pela política judaica tinha sido sempre determinado pela sempre importante questão de como manter os judeus afastados das parangonas dos jornais; os filantropos judeus, que tinham apresentado a Palestina como uma caridade terrivelmente cara, fazendo desaparecer os fundos, destinados a outros propósitos "mais válidos"; os leitores da imprensa yiddish, que durante décadas estiveram sinceramente convencidos de que a América era a terra prometida- todos eles, do Bronx a Park Avenue, até Greenwich Village e Brooklyn, estão unidos na firme convicção de que um Estado judeu é necessário». [177]

     Ora, o problema maior levantado por esta solução, de pendor revisionista, constitui-se, na perspectiva de Arendt, como uma armadilha. Em primeiro lugar, porque adopta um modelo político que a história demonstrou já não ser viável- «Não será fácil salvar os judeus nem a Palestina no século XX e é altamente improvável que isso possa fazer-se com a ajuda de categorias e métodos do século XIX. Se os sionistas mantiverem a sua ideologia sectária e o seu "realismo" de vistas curtas, terão perdido todas as hipóteses de que os pequenos povos persistam no nosso mundo, que está longe de ser belo» - depois, portanto, porque alimenta a lógica segundo a qual as populações minoritárias constituem, irremediavelmente, um problema: a conversão dos seus elementos em cidadãos de segunda classe; a sua exclusão do novo Estado na pior das hipóteses, era o que se tinha verificado entre os Estados-nação europeus e os judeus, e que estes estavam prontos a repetir, desta vez em relação aos vizinhos árabes.

     A possibilidade de uma federação parece-lhe, assim, a única alternativa séria: «De uma maneira geral, a verdade é que a Palestina, como pátria nacional para os judeus (bem como de outros pequenos países e outras pequenas nações) só pode ser salva se for incorporada numa federação. Os sistemas federados têm muito futuro porque é provável que ultrapassem os conflitos nacionais e possam, consequentemente, definir o fundamento de uma vida política em que os povos poderão reorganizar-se politicamente». [178]

     Enquanto vigorar o conceito de «Estado-nação», portanto, seja sob a forma de entidade isolada, seja sob a forma de aliança com outras, o problema da maioria-minoria perdurará, com os problemas de direitos que se lhe associam. Com efeito, «Uma verdadeira federação é constituída por diferentes elementos políticos, nacionais e outros, claramente reconhecíveis, que no seu conjunto compõem o Estado. Numa tal federação, os conflitos nacionais podem resolver-se pelo facto de que o problema insolúvel maioria-minoria já não existe. Os Estados Unidos foram o primeiro exemplo de uma tal federação. Neste tipo de união, nenhum Estado tem supremacia sobre outro e todos os Estados governam o país em conjunto». [179]

     Em que medida, finalmente, pode toda a problemática respeitante à condição de pária explicar a rispidez com que Arendt aborda a questão dos Direitos Humanos e das sociedades que se constituíram para a sua defesa - que padecem, na sua perspectiva, de uma «inquietante semelhança, em linguagem e composição, com as sociedades para a prevenção da crueldade para com os animais» [180] - é o que se pode, creio que agora sem equívoco, compreender. A denúncia que leva a cabo, afinal, é a de que « A concepção dos direitos humanos, baseada na suposta existência de um ser humano enquanto tal, fracassou no momento mesmo em que aqueles que professavam acreditar nela foram pela primeira vez confrontados com pessoas que tinham de facto perdido todas as suas outras qualidades e relações específicas- excepto que eram, ainda, seres humanos. O mundo não encontrou nada de sagrado na nudez abstracta de não se ser senão humano». [181]

     Reconhecendo embora que, nunca antes da sua proclamação (nos finais do século XVIII), teriam os Direitos do Homem sido tratados como um tema político prático, certo é, contudo, que os fundamentos em que se alicerçam (a emancipação do homem da tutela divina, a concomitante soberania por relação à lei e, enquanto povo, soberania em questões de governação, a identificação, enfim, dos direitos do homem com os direitos do povo), geram perplexidades difíceis de ignorar. A este propósito, afirma Arendt: « O homem tinha acabado de aparecer como um ser completamente emancipado, completamente isolado, que transportava a sua dignidade no seu próprio interior, sem referência a uma qualquer outra ordem mais ampla e envolvente, quando tornou a desaparecer enquanto membro de um povo. (...) Toda a questão dos direitos humanos, consequentemente, foi rápida e inextricavelmente ligada à questão da emancipação nacional». [182]

     Além disso, a Revolução francesa impusera uma concepção de humanidade que privilegiava o povo sobre o indivíduo, pelo que era aquele- não este- que determinava a imagem do homem. Ora, os acontecimentos, entretanto, tomariam um rumo nunca previsto: o aparecimento de pessoas e povos sem Estado (a bem dos quais, porventura mais do que de nenhuns outros, urgia clamar pela salvaguarda de direitos) veio mostrar que, ao invés da suposta independência dos direitos do homem por relação a qualquer governo, eles deixavam de funcionar quando a essas pessoas não restavam senão os direitos mínimos- «Eles não despertavam, na sua humanidade nua, face à qual a única resposta é a piedade, senão a estranha impressão de qualquer coisa totalmente inumana» [183] - e que nenhuma autoridade ou instituição parecia, desde então, disposta a garantir. Por outras palavras, « Os Direitos do Homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inaplicáveis - mesmo em países cujas constituições se baseavam neles - sempre que apareciam pessoas que já não eram cidadãos de nenhum estado soberano. A este facto, em si mesmo suficientemente perturbador, acresce a confusão criada pelas muitas e recentes tentativas de formular uma nova lista de direitos humanos, que demonstraram que ninguém parece estar apto a definir com alguma segurança o que estes direitos humanos gerais, enquanto distintos dos direitos dos cidadãos, realmente são». [184]

     A perda de um lar ou da protecção de um governo, entretanto, não é um fenómeno inédito; é dela que decorre, afinal, toda a tradição do direito ao asilo político, tal como o conhecemos nos países civilizados. Contudo, só se «os milhares de homens, aos quais o governo americano assegurou um asilo temporário nos Estados Unidos, fossem indivíduos perseguidos por governos da sua pátria, em razão da sua confissão religiosa ou das suas convicções políticas, essa medida tomaria uma grande significação. Ela significaria que um dos mais antigos e sagrados deveres dos Estados ocidentais e que um dos mais antigos e sagrados direitos dos homens do Ocidente, o direito de asilo, é honrado. Contudo, os milhares de homens que devemos esperar, aqui na América, não são refugiados no sentido antigo e sagrado do termo». [185] Inédita, então, é a circunstância no âmbito da qual um vasto número de pessoas reclama essa possibilidade, até então reservada a casos excepcionais. Mais grave, a preocupação pelo reforço dos direitos humanos, só incidentalmente toca o verdadeiro refugiado político, porquanto «Os novos refugiados eram perseguidos não em virtude do que tinham feito ou pensado, mas pelo que irremediavelmente eram - nascidos na raça errada, ou tipo de classe ou recrutados pelo tipo de governo errado (como no caso do Exército Republicano Espanhol). (...) Mas o facto de serem e parecerem apenas seres humanos cuja própria inocência - de todos os pontos de vista, e especialmente do ponto de vista do governo perseguidor- era a sua grande desgraça. Inocência, no sentido de completa falta de responsabilidade, era a marca da sua falta de direitos tal como era o selo da sua perda de estatuto político». [186]

     Não é a vida, portanto, nem sequer a liberdade, que constitui o direito fundamental; antes delas, impõe-se o direito a um lugar no mundo que torne significativas as acções e as palavras, e é neste sentido que «Os espíritos pragmáticos, demasiado zelosos, que acreditavam que se salvavam primeiro os homens e que não se podia determinar senão a seguir o seu estatuto político e jurídico, mostraram-se irrealistas e desprovidos de sentido prático. Só quando os judeus europeus tiverem sido reconhecidos como um dos povos confederados com os Aliados e a questão dos hóspedes vindos do país de ninguém, bem como o problema da salvação dos judeus da Europa, tiverem encontrado a sua solução jurídica, é que teremos dado um passo em frente». [187]

     A pessoa ou povo privado de direitos humanos – em rigor, a não-pessoa e o não-povo - é, assim, aquele que é excluído « não do direito à liberdade, mas do direito à acção; não do direito a pensar o que quiser, mas do direito à opinião. Privilégios em alguns casos, injustiças na maioria deles, bençãos e perdição são–lhes destinados acidentalmente e sem qualquer tipo de relação com o que quer que façam, tenham feito ou possam vir a fazer». [188]

     Em suma, todas as actividades humanas são condicionadas pelo facto de os homens viverem juntos; o artifício humano distingue a existência humana da circunstância meramente natural; a existência de uma esfera pública, simultânea presença de inumeráveis perspectivas que conferem ao mundo a sua realidade, configura-se como transcendência, como potencial imortalidade terrena e, assim, «Se a tragédia das tribos selvagens é a de que habitam uma natureza intocada que não podem dominar, e da qual, contudo, depende a abundância ou frugalidade da sua vida; se é a de que vivem e morrem sem deixar rasto, sem terem contribuído com coisa alguma para um mundo comum, então estas pessoas sem direitos são realmente atiradas para um peculiar estado de natureza. Não são bárbaros, certamente; algumas delas até pertencem aos estratos mais educados dos seus respectivos países; ainda assim, num mundo que quase liquidou a selvajaria, aparecem como os primeiros sinais de uma possível regressão da civilização». [189]

 

 3. O Mal como ausência de pensamento

 

 

     Eis o problema levantado pelo encontro de Arendt com Adolf Eichmann, em 1961, e que a levaria à polémica reflexão sobre a banalidade do mal- «A questão impossível de iludir é esta: a própria actividade de pensar (…) faz parte das condições que obrigam o homem a evitar o mal e que o condicionam negativamente em relação a ele? (…)». [190] A resposta é, como se verá, afirmativa. [191]

     Arendt afirma mais do que uma vez não ter qualquer pretensão a que Eichmann em Jerusalém se constitua como algo mais do que uma reportagem. Esta obra, porém, inscreve-se e deve ser lida à luz do trabalho de Arendt no seu conjunto, que a morte deixou por terminar.

     Antes, portanto, de abordarmos a questão em epígrafe, há que estabelecer, com Arendt, uma série de distinções, concretamente entre pensamento e argumentação filosóficos e pensamento e juízo políticos, porquanto se trata de mais uma distinção que o pensamento filosófico e político ocidental obliterou, com as consequências nefastas que já conhecemos.

     Ora, « A distinção estabelecida por Kant entre Vernunft (razão) e Verstand (entendimento) é crucial para o nosso percurso. (...) O que faz a demarcação entre as duas faculdades de razão e intelecto coincide com uma diferenciação entre duas actividades mentais absolutamente outras, pensamento e saber, e dois tipos de preocupação totalmente distintos, o sentido, para a primeira categoria, o conhecimento, para a segunda». [192] Mais, é ainda o confronto entre solidão e pluralidade humana que está em causa, pelo que estamos perante uma série de consequências que o próprio Kant não anteviu. Com efeito, «Ainda que insista sobre a impotência da razão em alcançar o saber, sobretudo tratando-se de Deus, da Liberdade e da Imortalidade- do seu ponto de vista, os objectos supremos do pensamento- não pôde desembaraçar-se completamente da convicção de que o fim último do pensamento, como do saber, é a verdade e o conhecimento. (...) Nunca se deu verdadeiramente conta de que tinha libertado razão e pensamento, que tinha justificado esta faculdade e a actividade correspondente, mesmo não podendo estas reivindicar resultados "positivos"». [193]

     Apoiando-se, portanto, na distinção kantiana de sentido e verdade, [194] que leva às ultimas consequências, Arendt amplia o alcance da razão, que considera exercer-se sobre tudo o que acontece, numa interpretação da significação segundo um modelo outro que não o da verdade. [195] Considera, com efeito, que «o obstáculo maior que a razão (Vernunft) coloca no seu próprio caminho surge do lado do intelecto (Verstand) e dos critérios perfeitamente fundados que ele estabeleceu para o seu próprio uso, quer dizer, para estancar a nossa sede e satisfazer a nossa necessidade de saber e de conhecimento. A razão pela qual Kant e os seus sucessores não prestaram nunca grande atenção ao pensamento enquanto actividade e, menos ainda, às experiências do eu pensante, é que, a despeito de todas as distinções, eles exigiam o mesmo género de resultados e aplicavam o tipo de critérios de certeza e de evidência que são os resultados e os critérios do conhecimento». [196]

     Ora, pensamento e razão transcendem- legitimamente, de resto- os limites do conhecimento e do intelecto; o pensamento não antecipa o conhecimento, revela, antes, a busca de significado que não atinge nunca resultados tangíveis. Razão e pensamento, consequentemente, dirigem o seu interesse a objectos que, incognoscíveis, não deixam por isso de ter um alto interesse existencial. As questões últimas que o pensamento coloca, não só não estão separadas da vida quotidiana, como a sustentam; abandoná-las por impossibilidade de lhes dar resposta definitiva, equivaleria a renunciar «à sua faculdade de responder às questões às quais pode responder». [197]

     «Desejo de saber», preocupação pelo conhecimento, não é, portanto, «necessidade urgente de pensar», preocupação pelo incognoscível, pelo que « A manifestação do vento do pensamento não é saber; é a aptidão para distinguir o bem do mal, o belo do disforme. Aptidão que, nos raros momentos em que a parada [ enjeu] é conhecida, pode muito bem desviar as catástrofes, pelo menos para o eu». [198]

     Colocar a questão do sentido corresponde, deste modo, a constantemente recomeçar do zero, num movimento em que a universalidade indeterminada do sentido e a particularidade concreta da experiência se alimentam e definem reciprocamente. É nesta acepção que «Os homens, apesar de totalmente condicionados existencialmente- limitados pelo intervalo de tempo entre o nascimento e a morte, sujeitos ao labor de modo a viver, motivados para o trabalho de modo a sentirem-se em casa no mundo, e impelidos para a acção em ordem a encontrar o seu lugar na sociedade dos seus companheiros-homens – podem transcender mentalmente todas estas condições, mas apenas mentalmente, nunca na realidade ou na cognição ou no conhecimento, em virtude do que conseguem explorar a realidade do mundo e a sua própria». [199]

     Assim, pois, os riscos que o estado de não-pensamento implica, em assuntos políticos como morais, são claros: « Subtraindo as pessoas ao perigo do exame crítico, ensina-se-lhes a agarrarem-se solidamente às regras de conduta, sejam elas quais forem, de uma dada sociedade, numa dada época. Aquilo a que elas se habituam, então, é menos ao conteúdo das regras, cujo exame as mergulharia na perplexidade, do que à possessão de regras nas quais se podem fazer entrar os casos particulares». [200] Esta possessão de regras, o que a permite é, em situação totalitária, a ideologia, e é ela, ainda, que convida a compreender as distorções de Eichmann à luz de algo mais do que a simples mentira.

     A ideologia, segundo Arendt, é precisamente o que o nome indica: a lógica de uma ideia. Ora, « A "ideia" de uma ideologia não é nem a essência eterna de Platão, acessível aos olhos do espírito, nem o princípio regulador da razão segundo Kant: ela tornou-se um instrumento de explicação.(...) O que habilita a "ideia" a ter este novo papel, é a sua "lógica" própria, a saber, um movimento que é a consequência da própria "ideia" e que não requer nenhum factor exterior para a pôr em movimento». [201]

     A dedução é o movimento de que aqui se trata, e o que importa salientar é o facto de estarmos perante um movimento interno que evita, a todo o custo, o confronto com o acontecimento, a factualidade, a experiência. [202] O que importa na ideologia não é, então, a ideia no sentido de conteúdo, mas a coerência lógica, o seu poder constrangedor de tudo explicar: [203] « O constrangimento puramente negativo da lógica, a interdição de contradições, torna-se "produtiva" de modo que uma linha de pensamento pudesse, de uma ponta à outra, ser instituída e imposta ao espírito, tirando dela as conclusões à maneira da simples argumentação. Este curso da argumentação não podia ser interrompido nem por uma ideia nova (...), nem por uma experiência nova». [204]

     Ora, na ideologia reúnem-se e reforçam-se mutuamente dois aspectos essenciais ao desbravamento do caminho da banalidade do mal, a saber, o abandono à necessidade e a fuga à realidade, a troca da liberdade inerente à faculdade de pensar pela «camisola lógica, com a qual o homem pode constranger-se a si mesmo quase tão violentamente como é constrangido por uma força exterior». [205] A ideologia é, pois, o meio pelo qual os seres humanos são privados da fonte da sua liberdade e espontaneidade: interiorizando a necessidade lógica da "ideia", tornam-se dóceis e previsíveis.

     É neste sentido que, « As oportunidades de Eichmann para se sentir como Pôncio Pilatos eram muitas e, à medida que os meses e os anos passaram, ele deixou de ter necessidade de sentir o que quer que fosse. As coisas eram assim, (...) fizesse o que fizesse, fê-lo como cidadão obediente à lei. Fez o seu dever (...). Não só obedeceu a ordens, também obedeceu à lei. Eichmann tinha uma suspeita confusa de que esta poderia ser uma distinção importante, mas nem a defesa nem os juízes lhe pegaram». [206] Não lhe pegaram, também, os críticos de Arendt, e toda a controvérsia que rodeou a reportagem sobre a banalidade do mal acabou por eclipsar o verdadeiro problema que o caso Eichmann colocava: o que pode acontecer à consciência numa situação de colapso moral, tal como a que o regime nazi proporcionou, concretamente através da burocracia, cujo papel solicita breves reflexões adicionais.

     Com efeito, Arendt chama a atenção para o facto de o processo que culminou na perpetração do Holocausto ter assumido, uma dentre muitas, a figura de uma socialização burocrática, isto é, o tipo de socialização que permite que um indivíduo entenda como o seu mais alto dever moral obedecer às ordens do seu superior, e que resulta da conjugação de quatro componentes fundamentais, a saber: vulnerabilidade económica, perda de autonomia, instituição da lealdade como valor moral fundamental e identificação da virtude e da consciência com o escrupuloso seguimento das ordens dadas. Com mais pormenor: em regime totalitário, e por circunstâncias institucionais, o indivíduo tem fortes razões para temer pela sua permanência num trabalho, porquanto a insegurança económica se constitui como a primeira forma de o levar a fazer o que quer que seja para o manter. Consequentemente, a lealdade do paterfamilias para com o seu núcleo familiar, rapidamente se transformará em lealdade para com o seu empregador. Por outro lado, a engrenagem da burocracia é caracterizada, nas palavras de Arendt, como animada pela «Lei de Ninguém» [ Rule of nobody] [207], segundo a qual cada indivíduo é apenas uma pequena peça da maquinaria. Perdendo o controlo do processo decisório, tanto quanto a capacidade de acompanhar o modo segundo o qual as decisões serão executadas, a consciência do burocrata não chega a temer pelas consequências das suas acções. A lealdade, enfim, pressupõe a subordinação dos objectivos e valores individuais aos objectivos e normas da instituição, decorrente da perda do sentimento de responsabilidade pessoal, e encontra o seu expoente mais alto na transformação da própria consciência, cumprida que foi, entretanto, a desumanização burocrática. [208] O moralmente errado é agora, e apenas, algo difícil de suportar, um dentre os muitos deveres institucionais. [209]

     Neste sentido, a questão maior que a renúncia ao pensamento coloca «não é uma questão de bondade ou de maldade, do mesmo modo que não se trata de inteligência ou estupidez. Aquele que não sabe o que é a relação silenciosa (na qual se submete ao exame crítico o que se diz ou o que se faz), não teme contradizer-se, o que significa que não terá nunca nem a possibilidade nem o desejo de justificar o que diz ou faz; do mesmo modo que não se deixará parar pela ideia de um crime, pois que pode contar esquecê-lo na hora seguinte. As pessoas más não estão "cheias de remorsos"». [210]

     Que relação silenciosa é esta, ao que parece capaz de nos condicionar negativamente por relação ao mal, é o que se trata, agora, de esclarecer, uma vez que « Se existe alguma coisa que pode impedir os homens de fazer o mal, deve ser uma propriedade inseparável da própria actividade, qualquer que seja o objecto». [211] Noutros termos, poderíamos perguntar, com Arendt, «O que é que nos faz pensar?».

     Percorrendo, com o propósito de responder a esta questão, a história do pensamento filosófico, nota Arendt: « Se desembaraçarmos estas respostas [ de Platão a Hegel] do seu conteúdo doutrinal (...), confrontamo-nos com confissões de uma necessidade única: a de tornar concretas as implicações do espanto platónico, a necessidade que experimenta (em Kant) a faculdade de raciocínio de transcender os limites do cognoscível, (...)- em Hegel, sob a forma de "necessidade da filosofia", capaz de transformar os acontecimentos exteriores em pensamentos próprios ao indivíduo (...). É esta incapacidade do eu pensante em dar conta de si mesmo que faz dos filósofos, dos pensadores de profissão, uma casta difícil de suportar». [212]

     Assim, pois, para que possamos abordar o problema colocado, há-de ser possível encontrar um modelo da actividade de pensar na sua realidade, «Em duas palavras, um pensador que saiba permanecer um homem entre os outros, que não fuja da praça pública, que seja um cidadão como os outros, que não faça nada e nada exija além do que cada um, segundo ele, pode esperar e vir a ser». [213] Arendt refere-se, é já evidente, à figura de Sócrates.

     « O que surpreende nos diálogos socráticos de Platão- escreve - é que todos eles pregam o cepticismo. A argumentação ou não leva a lado nenhum, ou anda em círculos». [214] Tudo começa com termos por demais conhecidos do discurso quotidiano- coragem, justiça, entre outros- mas que, à tentativa de definição, escapam fugidios. Além disso, não parece que a vocação de Sócrates seja, como a dos pensadores profissionais, a de decifrar enigmas ou proporcionar demonstrações; bem ao contrário, o seu intuito é o de confirmar junto de outros as suas próprias incertezas, o do exercício desinteressado da reflexão, à qual constantemente nos obriga. Trate-se do Sócrates moscardo- que desperta os cidadãos do sono crítico em que, de bom grado, permaneceriam- parteira- que traz à luz do dia opiniões e juízos prematuros, nunca antes examinados- ou do Sócrates torpedo- que se imobiliza a si próprio e tudo aquilo em que toca, em ordem a um outro tipo de actividade e de vida, porventura a mais elevada- o resultado não é nunca o de uma verdade que se substitui às más opiniões entretanto denunciadas. Ao vento do pensamento, enfim, estamos interditos de pedir resultados definitivos, porquanto ele « possui, a cada instante, um efeito de sapa, de destruição a respeito de todos os critérios estabelecidos, os valores, os padrões de bem e de mal, em duas palavras, em relação aos costumes e regras de conduta de que tratam os princípios da moralidade e a ética. Estes pensamentos entorpecidos, parece dizer Sócrates, são de tal modo práticos para o uso que nos podemos servir deles a dormir; mas se o vento do pensamento, que vou agora levantar em vós, vos arrancar ao vosso sono, vos acordar e encher de vida, vereis que não tendes senão incertezas, e que o melhor que há a fazer é partilhá-las com os outros». [215]

     Destroçar crenças sem, por si só, dar origem a outras; subverter o estabelecido, vaporizar as referências segundo as quais os homens se orientam, tal é o poder corrosivo do pensamento. Na medida em que nada substitui ao que faz desmoronar, esta actividade não pode encontrar o seu sentido senão no seu próprio âmbito, segundo um critério que não pode ser- não mais- o da verdade. Como se verá a seguir, o critério e o sentido do pensamento crítico- ou socrático- é a busca da conformidade do eu consigo mesmo. No caminho que leva a esta conclusão, a análise arendtiana de duas proposições de Sócrates - «Cometer uma injustiça é pior que sofrê-la» e «Mais valeria servir-me de uma lira dissonante e desafinada, dirigir um coro mal regrado ou encontrar-me em desacordo e em oposição com o toda a gente do que o estar comigo, totalmente só, e contradizer-me» - revela-se fundamental.

     Relativamente à primeira, Arendt começa por esclarecer que, enquanto cidadãos, a nossa preocupação é a de evitar que o mal aconteça, porquanto é o mundo em que vivemos todos- autor do crime, vítima e espectador- que está em causa. Neste sentido, portanto, «não é o cidadão que fala aqui pela boca de Sócrates, porque o cidadão é suposto preocupar-se primeiramente com o mundo, mais do que consigo mesmo; é o homem que se consagra antes de mais ao pensamento». [216] Não é, pois, a moral, mas a própria experiência do pensamento enquanto tal; não é o mundo, mas a necessidade de tudo submeter ao exame crítico, o amor da sabedoria e da filosofia, que parece implicar – na realidade é condição sine qua non – que, «por pouco que o mundo seja como tu [ Cálicles] o descreves, dividido entre fortes e fracos (...) de tal modo que não há outra possibilidade senão fazer o mal ou sofrê-lo, saberias então que mais vale sofrer do que fazer». [217]

     No que à segunda proposição concerne, é o seu carácter altamente paradoxal que obriga a um exame mais profundo. Com efeito, «Sócrates diz ser um e, consequentemente, incapaz de correr o risco de não estar em harmonia consigo próprio. Mas nada de idêntico a si mesmo, realmente e absolutamente Um, como A é A, pode estar em harmonia ou em desacordo consigo mesmo; é preciso sempre pelo menos dois tons para produzir um som harmonioso. (...) O "ser um" de Sócrates não é tão evidente como parecia; não sou somente para os outros, mas para mim, e, neste caso, não sou manifestamente um. Insinua-se uma diferença na minha unicidade». [218]

     A diferença – quer dizer, a pluralidade – não é do exterior que se apresenta, mas uma dualidade inerente a qualquer entidade, pelo que o pensamento, actividade solitária embora, não é, contudo, isolada. A consciência que o homem tem de si mesmo introduz a dimensão plural, dá origem ao diálogo interior em que, simultaneamente, sou quem coloca as questões e lhes responde. [219] Assim, pois, «Não é a actividade de pensar que instaura a unidade, que unifica o dois-em-um; bem ao contrário, o dois-em-um torna-se Um quando o mundo exterior se impõe ao pensador e interrompe bruscamente o processo de pensamento». [220]

     O ego mental só vive, portanto, em dualidade; a diferença e a pluralidade são as condições da sua existência e, «tal como a metáfora preenche o fosso entre o mundo dos fenómenos e as actividades mentais que aí se desenrolam, o dois-em-um socrático traz um bálsamo para a solidão do pensamento; a sua dualidade inerente deixa entrever a pluralidade infinita que é a lei da terra». [221]

     O pensamento, em suma, enquanto actualização da diferença presente na consciência de si, constitui-se como faculdade constantemente presente em qualquer indivíduo, mas da qual qualquer indivíduo, em determinadas circunstâncias (e circunstâncias às quais a inteligência ou estupidez são alheias), pode fugir. Não se trata, saliente-se, de concluir pela possibilidade de um «Eichmann em cada um de nós», [222] mas tão só de assumir que a incapacidade de pensar, a fuga à relação de si a si mesmo que Sócrates descobriu, a permanência no «Ich bleibe mir aus» (falto-me, não compareço a mim mesmo) de Jaspers, é a ameaça que paira, sem descanso, sobre qualquer ser humano.

     Deste modo, enfim, «Uma vida desprovida de pensamento nada tem de impossível; não chega a desenvolver a sua própria essência, é tudo - não é somente desprovida de significação; não é, realmente, viva. Os homens que não pensam são como sonâmbulos». [223]

     Compreender, portanto, em que sentido Eichmann se declarava «inocente no sentido da acusação» e apenas «culpado perante Deus», [224] depende, em ultima análise, da nossa capacidade de acompanharmos o modo de funcionamento dessa consciência, [225] e de resistirmos à tentação – compreensível embora- de a considerar, sem mais, ausente: « Atrás da comédia dos peritos em almas permanece o duro facto de que o seu caso não era, obviamente, de moral, para não falar de insanidade legal. (...) Pior, o seu não era, obviamente, um caso de ódio insano aos judeus, de fanático anti-semitismo (...). Infelizmente, ninguém acreditou nele. (...) E os juízes não acreditaram nele porque eram bons demais para admitir que uma pessoa medianamente "normal"(...) podia ser perfeitamente incapaz de distinguir o certo do errado (...) e perderam o maior desafio moral e até legal de todo o caso». [226]

     Se a voz da consciência não perturbou Eichmann - «Quem era ele para julgar? Quem era ele para ter os seus próprios pensamentos sobre a matéria?» [227] - isso deveu-se, ainda, a um outro factor: não havia ninguém, absolutamente ninguém, que fosse realmente contra a Solução Final, e por isso «não precisava de fechar os ouvidos à voz da consciência porque a sua consciência falava com uma "voz respeitável", com a voz respeitável da sociedade à sua volta». [228] O povo alemão, portanto, tinha aprendido a proteger-se da realidade exactamente com os mesmos meios que impregnavam a mentalidade de Eichmann. Por isso ele não era um monstro, mas um «idealista», e por isso insistia que os seus actos não eram, na altura, criminosos. [229]

     Mais – e este é, porventura, o ponto mais sensível de toda a reportagem - «onde quer que vivessem judeus, havia líderes judeus reconhecidos, e esta liderança, quase sem excepção, cooperou, de uma maneira ou de outra, por uma razão ou por outra, com os nazis. A verdade é que se o povo judeu tivesse estado realmente desorganizado e sem liderança, teria sido o caos e a miséria, mas o número total das vítimas dificilmente teria estado entre os quatro milhões e meio e os seis milhões de pessoas». [230] Além disto, escreve na mesma obra, quando oficiais da Gestapo e das SS estavam destacados noutros países - na Dinamarca, na Bulgária - as coisas já não se passavam com a crueldade que todos conhecemos; surpreendentemente, tornavam-se inseguros de si mesmos e já não eram de confiar, porque « tinham conhecido a resistência baseada em princípios, e a sua "dureza" derreteu como manteiga ao sol, foram até capazes de mostrar uns tímidos princípios de genuína coragem». [231]

     Decido deter-me na primeira passagem, pela seguinte razão: foi, talvez, a mais controversa e mal entendida, não só porque não veicula um juízo moral sobre os membros dos Conselhos Judaicos, como é frequentemente afirmado, como não insinua que os seis milhões de judeus assassinados o não teriam sido, se esses mesmos conselhos não existissem. Para evitar um discurso de pendor apologético – alcançada a empatia que o estudo mais cuidado de um autor naturalmente pode facilitar, é difícil aceitar os epítetos que Arendt suscitou aquando desta e de outras questões (foi desacreditada e vilipendiada como sofrendo do «complexo de enfant-terrible», foi considerada «desalmada», «maliciosa», «arrogante», «colaboracionista», «traidora» e «leviana» ...)- limitar-me-ei a chamar a atenção para o seguinte: o que Arendt diz era não só conhecido, como sustentado por vários estudiosos do Holocausto ; [232] a explicação que a própria dá da razão que a levou a fazer referência ao «mais negro capítulo de toda a história negra», não deixa dúvidas: « Insisti neste capítulo da história, que o julgamento de Jerusalém não conseguiu mostrar ao mundo nas suas verdadeiras dimensões, porque oferece a mais impressionante perspectiva da totalidade do colapso moral que os nazis provocaram na respeitável sociedade europeia – não só na Alemanha, mas em quase todos os países, não só entre os perseguidores, mas também entre as vítimas». [233]

     O que Arendt põe em causa, finalmente, é que a conduta moral se dê por costume, convicta de que «ninguém no seu perfeito juízo pode continuar a acreditar nisto». [234] Trata-se, com efeito, da rejeição do tradicional e clássico entendimento da virtude e, em A Vida do Espírito, escreve: « Só os hábitos e os costumes podem ser ensinados, e sabemos bem demais com que alarmante velocidade eles são desaprendidos e esquecidos, quando novas circunstâncias reclamam uma mudança nos usos e padrões de comportamento». [235] E esta era a grande lição que podíamos tirar dos acontecimentos do século XX. [236]

     Eichmann – dizia eu – não precisava de fechar os ouvidos à voz da consciência, porque ela falava «com a voz respeitável da sociedade à sua volta», e, nesta medida, começam a clarificar-se as relações entre terror e ideologia: o terror nasce do medo perante a acção e a humana potencialidade de renovados começos, pelo que aniquila as relações entre os homens; a ideologia, do medo da liberdade do pensar, pelo que corta as relações com a realidade: « A preparação [ levada a cabo pela propaganda] é coroada de sucesso a partir do momento em que as pessoas perderam todo o contacto com os seus semelhantes tanto quanto com a realidade que as rodeia; porque na perda destes contactos, os homens perdem também a faculdade de experimentar e de pensar. O sujeito ideal do reino totalitário não é nem o nazi convicto nem o comunista convencido, mas o homem para quem a distinção entre facto e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (isto é, as normas do pensamento) não existem mais». [237]

     Esta incapacidade para distinguir facto e ficção, verdadeiro e falso, tem consequências ainda a um outro nível - o da linguagem.

     A respeito de Eichmann, Arendt escreve: « A sua incapacidade de falar estava estreitamente ligada a uma incapacidade de pensar, nomeadamente do ponto de vista de outra pessoa. (...) Estava rodeado da mais fiável escolta contra as palavras e a presença de outros, e por isso contra a realidade enquanto tal». [238]

     «Amtssprache é a minha única língua», declarou Eichmann, frequentemente, e a sua «conversa oca», denunciada pelos juízes, devia-se ao facto de ser totalmente incapaz de construir uma frase que não constituísse um cliché. O próprio sistema, de resto, favorecia esta circunstância, ao obrigar os seus colaboradores a rígidas «regras de linguagem»: com efeito, termos como «extermínio» ou «liquidação» são raramente encontrados na correspondência do regime, mas o ponto capital é que « a armadilha deste sistema de linguagem não era para manter as pessoas ignorantes acerca do que estavam a fazer, mas para prevenir que não o comparassem com o seu velho, "normal" conhecimento de assassínios e mentiras. A grande susceptibilidade de Eichmann em apanhar palavras e frases comuns, combinada com a sua incapacidade para o discurso vulgar, fez dele, é claro, um sujeito ideal de "regras de linguagem"». [239]

     Um último aspecto a considerar: a enfática e inesperada declaração de Eichmann, de que teria vivido de acordo com o imperativo categórico de Kant.

     Como Arendt relata, Eichmann era capaz de formular o imperativo de uma forma surpreendentemente adequada; sofria, contudo, de uma distorção que viria a revelar-se crucial. Com efeito, Eichmann passara do «Age de tal modo que o princípio da tua vontade possa torna-se o princípio de leis gerais» ao « Age como se o princípio das tuas acções fossem os mesmos do legislador ou da lei do país- ou, na formulação de Hans Frank (...) "Age de tal modo que o Führer, se soubesse da tua acção, a aprovasse». [240]

     Ora, se é certo que o princípio kantiano põe a tónica na razão prática e na sua concomitante autonomia, e por isso consagra o homem como legislador moral mais do que como sujeito de deveres heteronomamente dados, também o é que a distorção de Eichmann concordava realmente como o que «ele próprio denominara versão de Kant "para uso caseiro do homenzinho": neste uso caseiro, o que resta do espírito de Kant é a exigência de que um homem faça mais do que obedecer à lei, vá além da mera chamada à obediência e identifique a sua própria vontade com o princípio por trás da lei- a fonte de onde a lei brotou. Na filosofia de Kant, essa fonte era a razão prática; no uso caseiro de Eichmann, era a vontade do Führer». [241] Eichmann não podia, portanto, ter-se apercebido do que fazia- em termos morais, não factuais- uma vez que o fazia em circunstâncias de crime legalizado pelo Estado. [242] Lealdade ao regime era, portanto, lealdade a Hitler, corporização da própria vontade de cada um: « O facto perturbador no sucesso do totalitarismo é (...) a verdadeira ausência do eu a si próprio [ selflessness] dos seus adeptos... Para espanto de todo o mundo civilizado, ele pode estar pronto a ajudar na sua própria perseguição e a assinar a sua própria sentença de morte para que a sua posição como membro do movimento não seja tocada... Identificação com o movimento e conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade para a experiência, mesmo as mais extremas como a tortura ou o medo da morte». [243]

     Entretanto, Arendt nunca deixa de estabelecer a distinção entre pensamento, acção e juízo, ainda que se possa vislumbrar o juízo como uma ponte entre o primeiro e a segunda. Certo, contudo, é que nem o pensamento é juízo, nem o juízo é acção, pelo que o ideal da união entre teoria e prática é rejeitado e, além disso, considerado perigoso, uma vez que reforça a concepção instrumental da acção enquanto um meio pelo qual um determinado fim posto pela razão seria realizado.

     Eichmann nunca alterou a sua história. Provavelmente não o podia fazer. A sua memória era alheia à experiência, à razão, à informação de qualquer tipo. Assim, « era como se naqueles últimos momentos estivesse a recapitular a lição que este longo caminho de humana perversidade nos tinha ensinado- a lição da terrível, desafiadora- das- palavras- e- do- pensamento, banalidade do mal». [244]

     Se alguma resposta existe para a violenta polémica que Eichmann em Jerusalém suscitou, ela encontra-se em Verdade e Política: «O seu objectivo é clarificar dois problemas diferentes, ainda que intimamente ligados, de que não tivera consciência antes, e cuja importância parece ultrapassar as circunstâncias daquela polémica. O primeiro diz respeito à questão de saber se é sempre legítimo dizer a verdade- acreditaria, sem reservas, no "fiat veritas, et pereat mundus"? O segundo nasceu da espantosa quantidade de mentiras utilizadas na "polémica"- mentiras sobre aquilo que eu escrevera, por um lado, e sobre os factos que relatara, por outro». [245]

     São duas as questões maiores com que nos confrontamos: a de saber, por um lado, que espécie de realidade tem a verdade se não tem poder no domínio público, esse domínio que, mais do que qualquer outro, garante a realidade da existência dos humanos que nele nascem, vivem e morrem; a de avaliar, por outro, se uma verdade impotente é ou não tão desprezível quanto um poder despreocupado com a verdade.

     É política a questão que anima Arendt, mais do que filosófica ou moral e, nesta medida, interessa deslocar o debate para o terreno das verdades de facto, porquanto «Os factos e os acontecimentos- que são sempre engendrados pelos homens vivendo e agindo em conjunto- constituem a própria textura do domínio político». [246]

     «Historicamente- escreve Arendt- o conflito entre a verdade e a política surge de dois modos de vida diametralmente opostos- a vida do filósofo tal como foi inicialmente interpretada por Parménides e em seguida por Platão, e o modo de vida do cidadão». [247] Daqui decorreu, por um lado, que a verdade tenha sido tradicionalmente entendida como apanágio do filósofo que, conviva das ideias eternas, fazia derivar delas os princípios susceptíveis de estabilizar os assuntos humanos; e, por outro, que ao cidadão, absorvido nos assuntos humanos, deles mesmos em constante mudança, cabia apenas a opinião. Os traços deste conflito entre verdade e opinião far-se-iam observar muitos séculos passados sobre o Górgias, de Platão, que no-lo apresentava enquanto «antagonismo entre comunicação sobre a forma de "diálogo", discurso apropriado à verdade filosófica, e a comunicação sob a forma de "retórica", através da qual o demagogo, como o diríamos hoje, persuade a multidão». [248]

     Passar da verdade à opinião coincide, assim, com a passagem do singular – a filosofia política platónica, de pendor francamente tirânico, assenta na desconfiança relativamente à possibilidade da verdade poder vir das massas- ao plural. Hoje, numa época em que, como nunca antes, é tolerada a diversidade da opinião, poderíamos ser levados a concluir pela resolução desse conflito. «Estranhamente, no entanto, não é esse o caso, pois o conflito entre a verdade de facto e a política (...) tem- pelo menos sob certos aspectos- traços muito semelhantes. (...) A verdade de facto, quando lhe sucede opor-se ao lucro e ao prazer de um dado grupo, é hoje acolhida com uma hostilidade maior do que alguma vez foi. (...) O que parece ainda mais perturbante é que as verdades de facto incómodas são toleradas nos países livres, mas ao preço de serem muitas vezes, consciente ou inconscientemente, transformadas em opiniões». [249]

     Estamos, pois, perante um problema político de primeira ordem, uma vez que é a realidade comum e efectiva que está em jogo. De algum modo, insinua-se a suspeita de que a submissão à verdade de facto pode constituir-se como uma atitude anti-política, o que, como se verá a seguir, não surpreende senão aparentemente.

     Com efeito, «Considerada de um ponto de vista político, a verdade tem um carácter despótico. Por isso ela é odiada pelos tiranos, que temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não podem monopolizar; e goza de um estatuto relativamente precário aos olhos dos governos que repousam sobre o consentimento e que dispensam a coerção. Os factos estão para além do acordo e do consentimento, e toda a discussão acerca deles- toda a troca de opiniões que se funda sobre uma informação exacta- em nada contribuirá para o seu estabelecimento. Pode discutir-se uma opinião inoportuna, (...) mas os factos inoportunos têm a exasperante tenacidade que nada pode abalar a não ser as mentiras puras e simples». [250]

     Assim, pois, aquele que diz a verdade encontra-se, diz Arendt, numa posição mais difícil do que o filósofo de Platão: pode não chegar a estar em causa a sua sobrevivência, mas a sobrevivência da sua verdade, ao contrário, está em risco, uma vez que «não apenas as afirmações factuais não contêm princípios a partir dos quais os homens possam agir tornando-os assim manifestos no mundo, mas também o seu próprio conteúdo se recusa a esse género de verificação. Aquele que diz a verdade de facto, na improvável eventualidade de querer arriscar a vida por um facto particular, cometeria apenas uma espécie de erro. O que se tornaria manifesto no seu acto seria a sua coragem, ou talvez a sua tenacidade, mas não a verdade do que ele tinha a dizer, nem mesmo a sua boa fé». [251]

     Com efeito, só a mentira é uma forma de acção, porquanto pretende mudar a narrativa da história e, assim, de certo modo, o próprio mundo. A simples narração dos factos, em contrapartida, não leva a nenhum tipo de acção, a não ser na situação extrema de uma comunidade inteiramente submersa pela mentira organizada: «Onde toda a gente mente sobre tudo o que é importante, aquele que diz a verdade, quer o saiba ou não, começou a agir; também ele se envolveu no trabalho político, pois, no improvável caso de sobreviver, deu um primeiro passo para a mudança do mundo». [252]

     Há, ainda assim, uma diferença sensível entre a mentira tradicional e a mentira moderna: aquela implicava apenas particulares e não pretendia enganar senão o inimigo; esta, por seu turno, assenta no engano de si próprio como instrumento indispensável à fabricação de imagens, que é, em si mesmo, pior do que o engano dos outros, uma vez que «O resultado de uma substituição coerente e total de mentiras à verdade de facto não é as mentiras passarem a ser aceites como verdade, nem que a verdade seja difamada como mentira, mas que o sentido através do qual nos orientamos no mundo real- e a categoria da verdade relativamente à falsidade conta-se entre os recursos mentais para prosseguir esse objectivo- fique destruído». [253]

     A experiência deste estremecimento é o que encontramos sob a dominação totalitária e, assim, «a atitude política em relação aos factos deve seguir o caminho muito estreito que existe entre o perigo de os tomar como resultado de qualquer desenvolvimento necessário, que os homens não podem impedir, e sobre o qual não podem ter, pois, qualquer influência, e o perigo de os negar, ou tentar eliminar do mundo, manipulando-os». [254]

     Em suma, a função política do historiador, do romancista, do contador de histórias, é a de ensinar a aceitar as coisas como elas são. Só numa concepção puramente utilitária da política, portanto, que desvirtua a humanidade desta forma de acção, porventura a mais excelente, pode a mentira estabelecer ou salvaguardar as condições da procura da verdade; só numa concepção utilitária da política, enfim, podem as mentiras, «precisamente porque são muitas vezes utilizadas como substitutos de meios mais violentos, (...) ser consideradas como instrumentos relativamente inofensivos do arsenal da acção política». [255]

     Assim, portanto, «Nenhum mundo humano destinado a durar mais tempo que a breve vida dos mortais, nele, poderá alguma vez sobreviver sem homens que queiram fazer o que Heródoto foi o primeiro a empreender conscientemente- a saber, l e g e i n t a e o n t a , dizer o que é». [256]

     Termino, enfim, com o comentário de Arendt sobre Peter Bamm, um médico alemão, que afirmara: « "Nós sabíamos disto. Não fizemos nada. (...) Está entre os refinamentos dos governos totalitários do nosso século não permitirem aos seus oponentes morrer uma morte grande, dramática de mártir, pelas suas convicções. (...) Nenhum de nós tinha uma convicção tão arraigada que nos levasse a um sacrifício inútil em nome de um significado moral mais alto". Escusado será dizer- escreve Arendt- que o autor continua a leste do vazio da sua muito enfatizada "decência" na falta do que chama "um significado moral mais alto". É verdade que a dominação totalitária tentou estabelecer estes buracos de esquecimento em que todos os feitos, bons e maus, desapareceriam (…). [ Mas] os buracos de esquecimento não existem. Nada humano é tão perfeito e há pessoas demais no mundo para tornar o esquecimento possível. Um homem ficará sempre vivo para contar a história. Por isso, nada pode ser alguma vez "inútil do ponto de vista prático", pelo menos não a longo prazo. (…) Politicamente falando, sob condições de terror quase todos vão obedecer, mas alguns não. Humanamente falando, não se pede mais para que este planeta continue um lugar próprio para a habitação humana». [257]

 

  

4. Os campos como mal radical

     Instituição decisiva, os campos desafiam o senso-comum, corporizam um fenómeno que não se deixa circunscrever pelas categorias tradicionais de explicação [258] e cuja essência - o terror ele mesmo - importa analisar. Inenarrável por definição, o universo concentracionário «serve de laboratório em que a crença fundamental do totalitarismo- tudo é possível- se encontra verificada». [259] O pior dos males, mostrá-lo-ei, não consiste no assassínio em massa- « A morte não é senão um mal menor. O assassino que mata um homem (...) move-se ainda no domínio da vida e da morte que nos é familiar. (...) O assassino deixa um cadáver atrás de si e não finge que a sua vítima nunca existiu (...). Ele destrói uma vida, mas não o facto da própria existência». [260] O summum malum é, então, a demonstração de que não há limites para o poder humano, nem nada de permanente no que toca à dignidade humana. [261] Com efeito, « Se levarmos a sério as aspirações totalitárias, e se nos recusarmos a deixar levar pelo que afirma delas o bom senso- que são utópicas e irrealizáveis- veremos que a sociedade da morte instituída nos campos é a única forma de sociedade em que se torna possível dominar inteiramente o homem». [262]

     Ora, «dominar inteiramente o homem» implica, antes de mais, a eliminação, tão sistemática quanto metódica, dos espaços de liberdade que a capacidade para a acção - enquanto decorrente da pluralidade humana mesma - solicita. Só «Um Homem de dimensões gigantescas» pode dar livre curso à lógica da ideia que os campos concretizam , na sua máxima expressão. Com efeito, « Em comparação com a demência do resultado final- a sociedade concentracionária- o processo pelo qual os homens são preparados para este fim, os métodos usados para adaptar os indivíduos a este estado de coisas, são límpidos e lógicos. A fabricação massiva e demencial de cadáveres é precedida pela preparação historicamente e politicamente inteligível de cadáveres vivos». [263]

     A dominação total, o mal radical sem «grandeza satânica», [264] efectua-se em três momentos:

     Homicídio da pessoa jurídica: pela abolição dos direitos civis e políticos de toda a população, muito antes dos campos, esta primeira fase caracteriza-se pela produção de apátridas, pela colocação de categorias inteiras de pessoas fora da protecção da lei, e culmina com a prisão de indivíduos inocentes, [265] cobaias ideais para a experiência de abolição da pessoa jurídica, pelo que « à amálgama dos detidos políticos e criminosos, pela qual começaram os campos de concentração na Rússia e na Alemanha, se juntou muito rapidamente um terceiro elemento, que em breve se tornaria maioritário (…): pessoas de que nenhum acto podia motivar a prisão, nem aos seus próprios olhos nem aos olhos dos seus carrascos». [266] Deste modo, só o aparecimento deste terceiro elemento torna evidente o contraste entre os campos e o sistema penal, porquanto a inicial presença de criminosos e prisioneiros políticos- «ultima concessão ao senso comum»- o diluía. Estas duas categorias de prisioneiros, com efeito, favoreciam a impressão de que os campos puniam comportamentos susceptíveis de castigo, e só a presença dos inteiramente inocentes marca os campos como a verdadeira instituição central do totalitarismo. [267] Como se pode ler em La Nature du Totalitarisme, « O medo torna-se sem objecto a partir do momento em que a escolha das vítimas se encontra totalmente liberta de qualquer relação com os pensamentos ou acções dos indivíduos. Se o medo é, inequivocamente, a tonalidade absoluta dominante dos países totalitários, já não pode servir de guia para acções particulares: deixou de ser um princípio de acção. A tirania totalitária é sem precedente na medida em que introduz um imenso movimento na calma dos cemitérios e confunde os homens no deserto do isolamento e da atomização». [268]

     O sistema concentracionário constitui, pois, um universo separado do sistema penal normal, condição de possibilidade da afirmação da arbitrariedade mesma, característica do poder absoluto. [269] Assim, pois, «O objectivo de um sistema arbitrário é destruir os direitos civis de toda uma população, que em última instância se tornou tão fora-da-lei nos seus próprios países como os sem- -Estado e os sem abrigo. A destruição dos direitos do Homem e o assassínio, nele, da pessoa jurídica, são o pré-requisito para o dominar totalmente (...) e isto aplica-se a qualquer [270] habitante de um Estado totalitário». [271] Antes, pois, de vermos o direito à vida ameaçado, há todo um longo e razoavelmente lento processo a percorrer.

     Com efeito, « Até os Nazis começaram o seu extermínio dos judeus privando-os, primeiro, do seu estatuto legal (o estatuto de cidadãos de segunda classe) e cortando-os do mundo dos vivos, agrupando-os em guetos e campos de concentração; e antes de terem posto as câmaras de gás em acção, testaram cuidadosamente o chão que pisavam e descobriram, para sua satisfação, que nenhum país reclamaria estas pessoas. O ponto é que uma condição de completa ausência de direitos foi criada antes que o direito à vida fosse desafiado.»; [272]

     Homicídio da pessoa moral: [273] « Aí procede-se tornando, de um modo geral e pela primeira vez na história, o martírio impossível». [274] Determinante no processo de produção de mortos-vivos, esta segunda fase organiza o esquecimento, e «O verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside em que os prisioneiros, mesmo se lhes acontece escapar, são cortados do mundo dos vivos muito mais claramente do que se estivessem mortos; é que o terror impõe o esquecimento». [275]

     Inviabilizando o martírio, torna-se a morte anónima e in-significante, [276] como se fosse possível prolongá-la indefinidamente e assim esvaziá-la, tanto quanto ao próprio facto de estar vivo, de sentido. Escreve Arendt: « Os campos de concentração, tornando a própria morte anónima (fazendo com que seja impossível saber se um prisioneiro está morto ou vivo), despem a morte da sua significação: o termo de uma vida cumprida. Em certo sentido, eles despossuiam o indivíduo da sua própria morte, provando que a partir daquele momento nada lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A sua morte limitava-se a confirmar o facto de que não tinha nunca verdadeiramente existido». [277]

     Caminhamos, nesse momento, para o adormecimento da consciência, que se tornou inadequada ou irrelevante: « Um homem é confrontado com a alternativa de trair e portanto matar os seus amigos, ou de mandar a sua mulher e filhos, pelos quais é, em todos os sentidos, responsável, para a morte...». [278] E é esta combinação de desesperança e anonimato que, inelutavelmente, contribuirá para o aniquilamento do indivíduo enquanto sujeito de juízo e de iniciativa. A radical solidão marca, portanto, este segundo passo, determinando a singular atmosfera de irrealidade a que já se referiu. [279]

     Em grande medida graças ao princípio da delegação de poder a certos detidos, a solidariedade torna-se impossível; impedidas de escolher entre o bem e o mal, as vítimas sentem-se culpadas e cúmplices dos feitos dos carrascos - «O importante não é somente que o ódio seja desviado dos culpados (os kapos eram mais odiados do que os SS) mas que a linha de demarcação entre perseguidor e perseguido, entre o assassino e a sua vítima, seja constantemente esbatida». [280] Conseguida a resignação absoluta, só uma questão se coloca ainda- a da sobrevivência;

     - Homicídio da identidade única de cada um: [281] fase final de desumanização, engendra-se neste ponto «um horror que eclipsa largamente o atentado à pessoa jurídica e o desespero da pessoa moral» [282] e desvela-se a demência radical de todo o processo: [283] « Trata-se de manipular o corpo humano, com as suas infinitas possibilidades de sofrer, de modo a destruir a pessoa humana tão inexoravelmente como certas doenças mentais de origem orgânica». [284] A dor assume aqui, de resto, uma relevância que não podemos descuidar. Com efeito, «A sensação mais intensa que conhecemos, intensa a ponto de apagar todas as outras experiências, quer dizer, a experiência da dor física aguda, é ao mesmo tempo a mais privada e a menos comunicável de todas. Talvez não seja só a única experiência que somos incapazes de transformar num aspecto adequado para a apresentação pública, mas além disso tira-nos a sensação da realidade [ em extremo] ». [285]

     O indivíduo é, agora, apenas um «feixe de reacções», momento de triunfo do sistema, uma vez que «Destruir a individualidade é destruir a espontaneidade, o poder que o homem tem de começar algo de novo a partir dos seus próprios recursos, algo que não se pode explicar a partir de reacções ao meio ambiente e aos acontecimentos». [286] Com efeito, e como se mostrou, a individualidade, entendida como capacidade para iniciar algo de novo, [287] está para além do automatismo dos processos naturais e do mero comportamento. É, pois, a capacidade humana para a liberdade moral, para a espontaneidade mesma, que está em causa: [288] « O que torna ridículas e perigosas quaisquer convicções e opiniões, em situação totalitária, é que os regimes totalitários tiram o seu maior orgulho do facto de não terem necessidade delas, nem de nenhuma forma de apoio humano. Os homens, na medida em que são mais do que a reacção animal e que a realização de funções, são absolutamente supérfluos para os regimes totalitários. O totalitarismo não tende para um reino despótico sobre os homens, mas para um sistema no qual os homens estão a mais. O poder total não pode ser atingido e preservado senão num mundo de reflexos condicionados, de marionetes que não apresentam o mínimo sinal de espontaneidade». [289]

     Ora, é precisamente na condição de conseguir reduzir o indivíduo a essa «marionete de rosto humano», a «animal pervertido», a simples coisa, que se cumpre o objectivo da dominação total: [290] organizar a pluralidade dos seres humanos como se estes não constituíssem senão um indivíduo [291] - «O problema é fabricar qualquer coisa que não existe: a saber, um tipo de espécie humana que se assemelha às outras espécies animais e cuja "liberdade" consistiria em "conservar a espécie"». [292]

     Um último aspecto merece a nossa atenção: a (aparente) [293] inutilidade dos campos. Por um lado, porque não foram criados com o objectivo da produtividade - « Qualquer que seja o trabalho aí realizado, ele teria sido bem melhor e com menos custos em condições diferentes». [294] E é também em virtude da sua inutilidade no plano económico que os horrores aí cometidos adquirem contornos verdadeiramente inacreditáveis - « Por outras palavras, não é só o carácter não-utilitário dos próprios campos – o absurdo de "punir" pessoas totalmente inocentes, a incapacidade de lhes extorquir trabalhos úteis em certas condições de vida, a inutilidade de aterrorizar uma população já completamente submetida - que confere aos campos as suas qualidades particulares e perturbadoras, mas sim a sua função anti-utilitária, o próprio facto de que as urgências prioritárias das actividades militares não pudessem interferir com estas "políticas demográficas". Tudo se passava como se a gestão destas fábricas de extermínio importasse mais aos nazis do que o facto de ganhar a guerra. (...) A extraordinária dificuldade que experimentamos em compreender a instituição dos campos de concentração e em encontrar-lhe um lugar na memória da história humana, vem precisamente da falta de tais critérios utilitários, falta que, mais do que qualquer outra coisa, é responsável      pelo aspecto irreal que rodeia esta instituição e tudo o que se lhe relaciona». [295]

É a esta global atmosfera de irrealidade e delírio, portanto, que se furta à tentativa de descrição, que parecem adequar-se as metáforas usadas na caracterização da vida post mortem: o Hades, onde se aglomeram refugiados, apátridas e desempregados; o Purgatório, onde penam os condenados ao trabalho forçado na União Soviética, e o Inferno, com os campos nazis. Pela sua dramática eloquência, pelo esforço de dizer o «mundo da agonia» que escapa, pela sua natureza mesma, ao domínio do discurso humano, remeto para as palavras da nossa autora: « Eis os factos: seis milhões de judeus, seis milhões de seres humanos foram arrastados para a morte sem que pudessem defender-se. O método utilizado foi o aumento do terror. Houve, antes de mais, a negligência calculada, as privações e a humilhação, quando aqueles que eram de frágil constituição física morriam ao mesmo tempo que aqueles que eram suficientemente fortes e rebeldes para se matarem. Veio a seguir a fome, à qual se juntou o trabalho forçado: as pessoas morriam aos milhares, mas a um ritmo diferente, segundo a sua resistência. Depois vieram as fábricas da morte e todos morreram juntos: jovens e velhos, fracos e fortes, doentes e sãos; morreram não na qualidade de indivíduos, quer dizer, de mulheres e de homens, de crianças ou adultos, de rapazes e de raparigas, bons ou maus, belos ou feios, mas foram reduzidos ao menor denominador comum da vida orgânica, mergulhados no abismo mais sombrio e profundo da igualdade primeira; morreram como animais, como coisas que não tinham corpo nem alma, nem mesmo um rosto sobre o qual a morte poderia ter posto o seu sinal. É nesta igualdade monstruosa, sem fraternidade nem humanidade - uma igualdade que os gatos e os cães poderiam ter partilhado -, que vemos, como se aí se reflectisse, a imagem do Inferno». [296] Um Inferno, portanto, que já não é metáfora dos nossos piores receios, mas antes a constatação de que a experiência concreta de um inferno terreno deixou de ser, precisamente, uma metáfora.

     Cabe lembrar, enfim, que o processo de dominação total, enquanto sistema que estabelece a absoluta superfluidade humana, encontra a sua diferença específica no facto de ser continuamente repetível e não se dirigir a nenhum grupo particular, pelo que se encontra plenamente justificada a reflexão arendtiana sobre as condições que, no mundo contemporâneo, podem proporcionar a sua reactivação: [297] « [ Há uma possibilidade] bastante desconfortável, mas dificilmente negável, de que crimes semelhantes possam ser cometidos no futuro. As razões desta sinistra possibilidade são gerais e particulares. Está na própria natureza das coisas humanas que qualquer acto que tenha aparecido uma vez e gravado na história do género humano, fique com o género humano como uma potencialidade, muito depois da sua actualidade se ter tornado uma coisa do passado». [298] Disto se dará conta no capítulo a seguir.

 

 

 

 

CAP. II

DO DESERTO

 

Em jeito de conclusão

     É possível, neste momento, dizer com Arendt: « Conclusão: o que observámos poderia igualmente ser descrito como a perda crescente de mundo, a desaparição do entre-dois. Trata-se da extensão do deserto, e o deserto é o mundo nas condições do qual nos movemos». [299]

     O deserto é, então, o espaço politicamente desorganizado, senão mesmo vaporizado, não só pelas formas de dominação totalitária, como também – e de uma forma porventura mais inquietante - pelas actuais democracias de massa. [300]

     Como Arendt salienta em A Condição Humana, «vivemos numa sociedade de consumidores e, posto que (...) labor e consumo não são mais do que duas etapas do mesmo processo, imposto ao homem pela necessidade da vida, trata-se somente de outra maneira de dizer que vivemos numa sociedade de laborantes». [301] Ora, como já se mostrou neste trabalho (Parte I, Capítulo II, 1.), a capacidade humana para a vida no mundo implica, sempre, a possibilidade de transcender os processos da vida, e, neste ponto, a técnica tem tornado mais fácil a fadiga do labor, menos penosa a necessidade. Com efeito, o que domina o processo do labor- a coordenação rítmica dos movimentos individuais, a noção mesma de processo- encontra o seu expoente máximo nas máquinas, que automatizam o processo do labor, entendamos, o processo da vida.

     Contudo, « Diferentemente da sociedade esclavagista, onde a "maldição" da necessidade continuava a ser uma vívida realidade (...), esta condição já não está plenamente manifesta e a sua não-aparência tornou-a mais difícil de observar e recordar. O perigo é claro. O homem não pode ser livre se não sabe que está sujeito à necessidade, dado que ganha sempre a sua liberdade com as suas tentativas, nunca conseguidas por inteiro, de se libertar da necessidade». [302]

     É certo que a emancipação do labor e das classes laborantes significou um progresso sensível em direcção à não-violência. Não se tirem, ainda assim, conclusões precipitadamente optimistas: esse progresso não abrangeu a liberdade e «nenhuma violência exercida pelo homem, excepto a empregue na tortura, pode igualar a força natural que exerce a própria necessidade». [303]

     Ora, o perigo da automatização consiste, precisamente, em que o processo da vida, no seu sempre repetido ciclo natural, se intensifique enormemente, desta vez «sem dor nem esforço», tornando mais mortal «o principal carácter da vida por relação ao mundo, que é desgastar a durabilidade». [304]

     A questão, por conseguinte, «não é tanto a de saber se somos donos ou escravos das nossas máquinas, mas se estas ainda servem o mundo e as suas coisas ou se, pelo contrário, essas máquinas e o movimento automático dos seus processos começaram a dominar e até a destruir o mundo e as coisas». [305]

     A emancipação do labor, que devemos ao mundo moderno, teve por consequência a nefasta usurpação da esfera pública pelo animal laborans; ora, «enquanto o animal laborans continuar na posse dessa esfera, não pode haver autêntica esfera pública, mas actividades privadas abertamente manifestas. O resultado é aquilo a que chamamos com eufemismo cultura de massas». [306]

     Mais, a esperança marxista de que, conquistado o tempo livre, o animal laborans pudesse finalmente tornar-se produtivo, dedicar-se a actividades «mais elevadas», [307] revelou-se, afinal, uma ilusão: «O tempo de ócio do animal laborans gasta-se sempre no consumo, e quanto mais tempo livre lhe resta, mais ávidos e veementes são os seus apetites». [308] A nossa actual economia, em que a voracidade do consumo faz desaparecer as coisas tão rapidamente como aparecem no mundo, é disso a mais preocupante expressão.

     A divisão do labor, por outro lado, «baseia-se no facto de que os homens podem unir a sua força laboral e "comportar-se mutuamente como se fossem um". Esta unidade é exactamente o contrário da cooperação, indica a unidade da espécie a respeito da qual todo o membro é o mesmo e intercambiável». [309]

     A superfluidade é, portanto, uma tendência das sociedades modernas e, nesse sentido, o perigo sobrevive aos totalitarismos de Hitler ou de Estaline. [310] «Em situação de radical alienação do mundo – escreve em O conceito de História – nem a história nem a natureza são de algum modo concebíveis. Esta dupla perda de mundo – a perda da natureza e a perda do artifício humano no seu sentido mais amplo, que incluiria toda a história – deixou atrás de si uma sociedade de homens que, sem um mundo comum que, ao mesmo tempo os unia e separava, ou vivem em solitária e desesperada separação, ou são comprimidos numa massa. Porque uma sociedade de massas não é senão aquele tipo de viver organizado que se estabelece automaticamente a si próprio entre os seres humanos que ainda estão relacionados uns com os outros, mas que perderam o mundo, outrora comum a todos eles». [311]

     E é por isso, afinal, que «A assustadora coincidência da moderna explosão de população com a descoberta de aparatos técnicos que, através da automatização, farão de grandes secções da população "supérfluas" até em termos de labor, e que, através da energia nuclear, tornam possível lidar com esta dupla ameaça através do uso de instrumentos em comparação com os quais as instalações de gaseamento de Hitler parecem brinquedos, deveria ser suficiente para nos fazer tremer». [312]

     Em termos arendtianos, dir-se-ia que, tal como o fenómeno totalitário obrigou à suspensão da categoria da tentação na abordagem do conceito de mal, também a era nuclear se alicerçou no triunfo da ciência, no abandono da busca de significação e de liberdade política, da acção e do discurso, em favor de um pensamento calculista. E é do restabelecimento da esfera política enquanto tal, do seu carácter revelador, inerente, ele mesmo, à sua capacidade de produzir histórias; é, enfim, da sua libertação da esfera sócio-económica, que parecem depender as frágeis esperanças de reabilitação do mundo contemporâneo. [313]

     Em suma, a substituição do múltiplo pelo Uno, e a concomitante destruição da possibilidade de agir, é o que, como se vem mostrando, pode fornecer uma chave para a inteligência do deserto.

     É chegada a altura, então, de se concentrarem esforços na interpretação de mais um tema caro a Arendt: o da desolação.

     Desolação e isolamento não são o mesmo: «posso estar isolado- quer dizer, numa situação em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo- sem estar "desolado": e posso estar desolado, quer dizer, numa situação em que, enquanto pessoa, me sinto à parte de toda a sociedade humana- sem estar isolado». [314]

     O isolamento tem, além disso, um carácter positivo no que às actividades produtivas do homem diz respeito. Assim, o homo faber, o filósofo, o poeta, estão em companhia de si mesmos e, por aí precisamente, em contacto com os outros homens. É, de resto, o que nos revela a frase de Catão: «Nunca estava menos só do que quando estava só.»

     Deste modo, portanto, «No isolamento, o homem permanece em contacto com o mundo enquanto obra humana; não é senão quando a forma mais elementar de criatividade- quer dizer, o poder de juntar qualquer coisa de si ao mundo comum- é destruída, que o isolamento se torna absolutamente insuportável». E é quando se tornou insuportável [315] que o isolamento deu lugar à desolação, a que Arendt não atribui - saliente-se – qualquer sentido psicológico; a desolação é, antes, a solidão do homem desenraizado, privado do chão que o mundo constitui; diz respeito à vida humana no seu todo, e não apenas ao domínio político da vida, como nas tiranias. Por aí mesmo, afinal, se vislumbra o carácter inteiramente novo da dominação totalitária, que se funda «na desolação, na experiência de absoluta não-pertença ao mundo, que é uma das experiências mais radicais e desesperadas do homem». [316]

      A inutilidade experimentada pelas massas modernas, o desenraizamento, pode ser a condição preliminar da superfluidade; do mesmo modo, a solidão pode tornar-se desolação, ainda que apenas na circunstância em que o meu próprio eu me abandona («Ich bleibe mir aus», na formulação de Jaspers).

     O que torna, então, a desolação insuportável «é a perda do eu que, se pode tomar realidade na solidão, não pode, entretanto, ser confirmado na sua identidade senão pela presença confiante e digna de fé dos meus iguais. Nesta situação, o homem perde a fé que tem em si mesmo, como companheiro dos seus pensamentos, e esta elementar confiança no mundo, necessária a qualquer experiência. A única faculdade que não tem necessidade nem do eu, nem de outrem, nem do mundo para funcionar seguramente, e que é tão independente do pensamento como da experiência, é a aptidão para o raciocínio lógico cuja premissa é evidente por si». [317]

     Isto pudemos aprender com a experiência da dominação totalitária; não é tão certo que consigamos evitar que se converta na experiência quotidiana das massas do nosso século.

     Conduzidos por Arendt, recordemos a interpretação heideggeriana da palavra de Nietzsche «O deserto cresce»: «o que significa, a desolação (Verwüstung) estende-se. Desolação é mais do que destruição (Zerstörung). Desolação é mais sinistro (Unheimlicher) que aniquilamento (Vernichtung). A destruição abole somente o que cresceu e foi edificado até aqui. Mas a desolação impede o futuro ao crescimento e impede toda a edificação [ ...] . O Sahara em África não é senão uma forma de deserto. A desolação da terra pode acompanhar-se do mais alto nível de vida do homem e também da organização de um estado de felicidade uniforme de todos os homens. A desolação pode ser a mesma coisa nos dois casos e tudo assombrar da maneira mais sinistra, a saber, escondendo-se». [318]

     É, enfim, em circunstâncias de desolação que ocorrem crimes sem castigo e sem perdão. Em A Condição Humana, escreve: «O descobridor do papel do perdão na esfera dos assuntos humanos foi Jesus de Nazaré. (...) Só mediante a mútua exoneração do que fizeram, os homens continuam a ser livres, só pela constante determinação de mudar de opinião e começar outra vez se lhes confia um poder tão grande como o de começar algo de novo. Neste aspecto, o perdão é o extremo oposto da vingança. (...) A alternativa ao perdão (...) é o castigo, e ambos têm em comum o facto de tentarem finalizar algo que, sem interferência, prosseguiria interminavelmente. Portanto é muito significativo, elemento estrutural da esfera pública, que os homens não sejam capazes de perdoar o que não podem castigar, e incapazes de castigar o que se tornou imperdoável. Esta é a verdadeira marca distintiva dessas ofensas a que, desde Kant, chamamos "mal radical". (...) Aqui, quando o próprio acto nos despossui de todo o poder, podemos apenas repetir com Jesus: teria sido melhor que uma pedra pesada lhe tivesse sido atada ao pescoço, e que fosse deitado ao mar». [319]

     Pode considerar-se satisfatoriamente explicada, parece-me, a posição de Arendt relativamente à condenação de Eichmann: não se trata, como alguns insinuaram, de branquear os crimes nazis- muito menos de boicotar o seu castigo; [320] trata-se, antes, da constatação de que foi possível cometerem-se ofensas que nem os Dez Mandamentos nem as nossas molduras legais estavam prontos a enquadrar, e que, deste modo, deixam sempre a desconfortável sensação de desproporção entre o mal cometido e o castigo aplicado.

     Em suma, a ameaça maior da desolação é a de devastar o mundo, a de aniquilar a possibilidade, que lhe é inerente, de novos e infinitos começos. Ora, o começo, «antes de se tornar um acontecimento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, é idêntico à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est – "para que houvesse um começo, o homem foi criado", diz Santo Agostinho. Este começo é garantido por cada novo nascimento; ele é, na verdade, cada homem». [321]

 

 

 

 

  

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

     Este trabalho – é-me hoje evidente – está ferido de falta, de falha e de ausência. Uma [322] – a de Heidegger – reclama, dado o seu carácter ostensivo, uma justificação.

     Não está em causa o reconhecimento da influência do filósofo no percurso e na moldura conceptual de Hannah Arendt – ela é bem conhecida, no fascínio do seu início, na mágoa com que terminou – e, ainda assim, a leitura arendtiana do seu mestre primeiro parece ter-se saldado em apropriações a tal ponto pessoais que, pela originalidade que lhe é, nessa medida, inerente, tornar-se-ia quase espúrio, ao menos no contexto deste trabalho, o esforço da genealogia. Refiro-me, concretamente, aos lugares – diferenciados – a que aporta o comum trajecto fenomenológico de «regresso à origem», às coisas mesmas, e de que os conceitos de mundo, de individuação, de público, de existência autêntica/inautêntica, oferecem inequívoco testemunho. [323]

     Com efeito, a estratégia de Arendt concretiza-se no movimento de desconstrução fenomenológica, tal qual a Introdução de Ser e Tempo a caracteriza - « O que se mostra, tal como se mostra de si mesmo, fazê-lo ver a partir dele mesmo. Eis o sentido formal da investigação que dá pelo nome de fenomenologia. Mas o que se exprime assim não é senão a máxima formulada antes: "o direito às coisas mesmas!"». [324]

     É também a Ser e Tempo que Arendt, de algum modo, regressa – aos temas da contingência, do desvelamento, da mundaneidade como dimensão estrutural da existência humana - e de que na sua ontologia da esfera pública, nos seus conceitos de acção e liberdade política, na hierarquia das actividades humanas, na relação que estabelece entre significado e instrumentalidade, entre o político e o social, se sente ainda o pulsar.

     E, contudo, a herança do mestre acabaria por desenvolver-se numa direcção claramente anti-heideggeriana. É este desvio que «desculpa» a ausência, é este o desvio, ainda assim, a esclarecer.

     Em Heidegger, « A "mundaneidade" é um conceito ontológico e designa a estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo. (...) A mundaneidade é, ela mesma, um existencial. (...) Ontologicamente, "mundo", longe de ser uma determinação do ente que, essencialmente, não é, é, ao contrário, uma característica do próprio Dasein». [325] Quer dizer, distinguindo claramente entre a quotidianeidade (inautêntica) e o sentido ontológico (autêntico) do mundo, este aparece, em Heidegger, enquanto totalidade de relações «em-ordem-a», pré-teoreticamente dada; enquanto, pois, espaço de inteligibilidade, e, nessa medida, como condição histórico-transcendental da possibilidade de sentido. Mais, este mundo autêntico em que o Eu se encontra só face a si mesmo, anuncia-se no momento em que a estabilidade do quotidiano ruiu e a disposição fundamental da angústia se expôs à experiência do Nada [ Néant] , do face a face com a morte - e constitui-se como estranheza, não como lugar que habitamos em comum. A resposta à questão «Quem?» («Quem é o Dasein?»), não passa, pois, pela partilha de actos e palavras.

     Ora, em hostilidade aberta a esta viragem do eu sobre si mesmo, A Condição Humana não pretende senão, precisamente, questionar a demarcação entre um mundo público, dito inautêntico, e esse mundo autêntico, solipsista. Para Arendt, com efeito, a individuação só pode ocorrer no contexto da pluralidade e da acção na esfera pública, pela partilha da palavra e dos actos num mundo comum de aparências, e é esta inversão do considerado autêntico e inautêntico, é este repúdio da reificação do pensamento como única acção genuína, que abre o abismo, irreversível, entre uma fenomenologia do ser-para-a-morte e a do elogio da natalidade, condição ontológica do actor enquanto começo. [326]

     A este propósito, uma referência breve ao «elitismo» de Arendt. A hierarquia do labor, do trabalho e da acção refere-se a actividades, não a grupos ou tipos. O que interessa à nossa autora, por outro lado, não é tanto o conteúdo inerente a cada uma das esferas – a pública e a privada – mas a preservação da sua integridade e da sua diferenciação. A excelência da actividade política – não será excessivo sublinhá-lo – reclama a luminosidade da esfera pública, tanto quanto a sombra do privado. E é no recolhimento do oculto, lugar originário do Mistério, que a liberdade e a acção desveladora encontram, afinal, a sua mais elementar condição.

     Finalmente – e esta é, porventura, a mais ousada ambição deste trabalho – se algum tributo me fosse permitido prestar à nossa autora, ele passaria, irremediavelmente, pelo esforço do compromisso com esse mundo comum, que encontra na luminosidade da intervenção política a confirmação pública. Por outras palavras, elaborar um trabalho que, mais do que um exercício de erudição de perfil académico, pudesse contribuir, sem equívoco, para a busca de significação, e por isso para reconciliação, a um tempo crítica e piedosa , [327] com a nossa época, constituiria o mais fiel assentimento à aventura humana para a qual, nos termos de Arendt, o Mundo mesmo permanentemente nos convoca e à qual Arendt tão magistralmente respondeu.

     O Compromisso – com a vida, com os outros, com o mundo, com a humanidade a mais humana – é o convite que a vida e obra de Hannah Arendt insistentemente nos renova. Soubéssemos todos responder-lhe tão bem. [328]

 

 


 

 

 

Para uma bibliografia exaustiva, remeto para For the Love of the World, de Elisabeth Young-Bruehl

 

 

1. LIVROS

 

ARENDT, Hannah – Les Origines du Totalitarisme (1951), [ Vol. I – L’Impérialisme, 1982 ; Vol. II – L’Antisémitisme, 1984 ; Vol. III - Le Système Totalitaire, 1972] , Paris, Seuil

ARENDT, Hannah – La Nature du Totalitarisme (1953), Paris, Payot, 1990

ARENDT, Hannah – Rahel Varnhagen, The Life of a Jewish (1957), John Hopkins, Baltimore and London, 1997

ARENDT, Hannah – La Condición Humana (1958), Barcelona, Paidós, 1993

ARENDT, Hannah – Between Past and Future (1961), Middlesex, Penguin, 1993, trad. francesa por La Crise de la Culture, Gallimard, 1972

ARENDT, Hannah – Sobre la Revolución (On Revolution, 1963), trad. Pedro Bravo, Madrid, Alianza Editorial, 1988

ARENDT, Hannah – Eichmann in Jerusalem, A Report on the Banality of Evil (1963), Middlesex, Penguin, 1994

ARENDT, Hannah – Verdade e Política (Truth and Politics, 1967), trad. Manuel Alberto, Lisboa, Relógio d’Água, Col. Sophia, 1995

ARENDT, Hannah – Homens em Tempos Sombrios (Men in Dark Times, 1968), trad. Ana Luísa Faria, Santa Maria da Feira, Relógio d’Água, 1991

ARENDT, Hannah – On Violence (1970), Harcourt Brace & Company, 1970

ARENDT, La Vie de l’Esprit ( The Life of the Mind, 1978), [ Vol. I - la pensée, trad. Lucienne Lotringer, Paris PUF, 1981 ; Vol. II - le vouloir, 1983]

ARENDT, Hannah – Qu"est-ce que la Politique (Was ist Politik ?1993), trad. Sylvie Courtine-Dénamy, Paris, Seuil, 1995

ARENDT, Hannah – O Conceito de Amor em Santo Agostinho, (Der Liebesbegriff Bei Augustin, 1929), trad. Alberto Pereira Dinis, Lisboa, Instituto Piaget, Col. Pensamento e Filosofia,

ARENDT, Hannah – Crisis de la Republica (Crises of the Republic, 1969), trad. Guillermo Solana, Madrid, Taurus, 1973

ARENDT, Hannah – Lectures on Kant’s Political Philosophy, University of Chicago Press, 1982

 

 

2. ARTIGOS

 

ARENDT, Hannah – Die jüdische Armee- der Beginn einer jüdische Politik? (1941), trad. francesa de S.C.-Dénamy, l"Armée juive, le début d"une politique juive ? in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Des Teufels Redekunst (1942), trad. francesa de S.C.-Dénamy, L"éloquence du diable, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Die Sogenannte jüdische Armee (1942), trad. francesa de S.C.-Dénamy, La "prétendue armée juive", in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Die Krise der Sionismus(1942), trad. francesa de S.C.-Dénamy, La crise du Sionisme, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Can the jewish-arab question be solved ? (1943), trad. francesa de S.C.-Dénamy, La question judéo-arabe peut-elle être résolue ?, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Für Ehre und Ruhm des jüdischen Volkes (1944), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Pour l"honneur et la gloire du peuple juif, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Balfour Declaration und Palestina Mandat (1944), trad. francesa de S.C.-Dénamy, La déclaration Balfour et le mandat sur la Palestine, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – The Stateless People (1944), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Des hôtes venus du pays de personne, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Neue Vorschläge für jüdische-arabischen Verstandigung (1944), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Nouvelles propositions pour une entente judéo-arabe, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Zionism Reconsidered(1944), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Réexamen du Sionisme, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Die Entrechten und Entwürdigten (1944), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Sans droits et avilis, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – The Image of Hell (1946), trad. francesa de S.C.-Dénamy, L"image de l"Enfer, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – About Collaboration (1948), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Sur la "Collaboration", in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Peace or Armistice in the Near East ? (1950), trad. francesa de S.C.-Dénamy, La paix ou l"armistice au Proche-Orient ?, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Social Science Techniques and the study of Concentration Camps (1950), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Les techniques de la science sociale et l"étude des camps de concentration, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – Introdução a Auschwitz de Bernd Naumann (1966), trad. francesa de S.C.-Dénamy, Le procès d’Auschwitz, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah – The Portable Hannah Arendt, Penguin, 2000

ARENDT, Hannah – De la Historia de la Acción, trad. Fina Birulés, Barcelona, Paidós, 1998

3. CORRESPONDÊNCIA

 

ARENDT-JASPERS – Correspondência (1926-1969), Paris, Payot, 1995

ARENDT-McCARTHY – Entre Amigas, Correspondência (1949-1975), Barcelona, Lumen, 1998

ARENDT-BLUMENFELD – Correspondência (1933-1963), Paris, Desclée de Brouwer, 1998

 

 

 

ALLONES, Myriam Revault – Amor Mundi. La Persévérance du Politique, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

AMIEL, Anne – Hannah Arendt : Política e Acontecimento, Lisboa, Instituto Piaget, Col. Pensamento e Filosofia, 1996

BENHABIB, Seyla – The Reluctant Modernism of Hannah Arendt, Sage Publications, Califórnia, 1996

BERGEN, Bernard J. – Hannah Arendt and the Final Solution, Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1998

BERNSTEIN, Richard J. – Hannah Arendt and the Jewish Question, Polity Press, 1996

BOWEN-MOORE, Patricia – Hannah Arendt’s Philosophy of Natality, St. Martin’s Press, New York, 1989

BOELLA, Laura – Hannah Arendt: Agire Politicamente, Pensare Politicamente, Feltrinelli, 1995

CANTISTA, Maria José – O Político e o Filosófico no Pensamento de Hannah Arendt, Separata da Revista Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, II Série, Vol. XV-XVI, Porto, 1998-1999

CANTISTA, Maria José - A Significação do bios politikós ou o regresso ao pensamento em Hannah Arendt, no prelo, 2000

CASSIN, Barbara – Grecs et Romains. Les Paradigmes de l’Antiquité chez Hannah Arendt et Heidegger, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

CHALIER, Catherine – Radicalité et banalité du mal, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

COLLIN, Françoise – N’Être, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

COLLIN, Françoise – Agir et Donné, in Hannah Arendt et la Modernité, Paris, Vrin, 1992

COURTINE-DÉNAMY, Sylvie – Hannah Arendt, Instituto Piaget, Col. História e Biografias, 1994

CHAUMONT, J.-M. – La singularité de l"univers concentrationnaire selon Hannah Arendt, in Hannah Arendt et la Modernité, Paris, Vrin, 1992

EVEN-GRANBOULAN, Geneviève – Une Femme de Pensée, Anthropos, 1990

ESLIN, Jean-Claude – Hannah Arendt : L’Obligée du Monde, Michalon, Col. Le bien Commun, 1996

ETTINGER, Elzbieta – Hannah Arendt – Martin Heidegger, Jorge Zahar Editor, 1996

HEUER, Wolfgang – Hannah Arendt, Éd. Jacqueline Chambon, 1987

KATEB, George – Hannah Arendt: Politics, Conscience, Evil, Rowman & Allanheld, 1984

KOHN, Jerome – Evil and Plurality, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, ed. Larry May e Jerome Kohn, London, MIT Press, 1997

LEIBOVICE, Martine – Le Paria chez Hannah Arendt, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

LYOTARD, Jean-François – Le Survivant, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

MAY, Larry – Socialization and Institutional Evil, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, ed. Larry May e Jerome Kohn, London, MIT Press, 1997

MOLOMB"EBEBE, Munsya – Le Paradoxe comme fondement et horizon du politique chez Hannah Arendt, DeBoeck Université, 1997

PEETERS, R. – La vie de l’Esprit n’est pas contemplative. Hannah Arendt et le démantèlement de la "vita contemplativa", in Hannah Arendt et la Modernité, Paris, Vrin, 1992

PIRET, J.-M. – Entre Origine et Avenir. Tradition, histoire et mise en forme de l’espace publique chez Hannah Arendt et Hermann Lübbe, in Hannah Arendt et la Modernité, Paris, Vrin, 1992

RICOEUR, Paul – Soi-même comme un autre, Seuil, Paris, 1990

RICOEUR, Paul - Lectures 1- Autour du Politique, Seuil, Paris, 1991

RICOEUR, Paul - Le Juste, Ed. Esprit, Paris, 1995

RICOEUR, Paul - La Critique et la Conviction, Calmann-Lévy, Paris, 1995

RICOEUR, Paul – Le Mal. Un défi à la philosophie et à la théologie, Labor et Fides, Genève, 1986, trad. brasileira de Maria da Piedade Eça de Almeida, O Mal, Papirus, S. Paulo, 1986

ROVIELLO, Anne-Marie – Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt, Instituto Piaget, Col. Pensamento e Filosofia, 1987

ROVIELLO, Anne-Marie – Les intellectuels modernes. Une pensée an-éthique et prétotalitaire, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Pauot, 1996

TAMINIAUX, Jacques – La Fille de Thrace et le Penseur Professionnel: Arendt et Heidegger, Payot, 1992

TASSIN, Étienne – La question de l’Apparence, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

VILLA, Dana R. – Arendt and Heidegger: The Fate of the Political, Princeton University Press, 1996;

VILLA, Dana R. - Politics, Philosophy, Terror : Essays on the Thought of Hannah Arendt, Princeton University Press, 1999

VILLA, Dana R. – The Banality of Philosophy, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, ed. Larry May e Jerome Kohn, London, MIT Press, 1997

YOUNG-BRUEHL, Elizabeth – Hannah Arendt: For the Love of the World, Yale University Press, 1982

 

 


NOTAS

1 CH, pp.39-40: «A grandeza do homérico Aquiles só pode compreender-se se o virmos como "o agente de grandes acções e o orador de grandes palavras", (...) o que originalmente significou não só que a maior parte da acção política, até onde permanece à margem da violência, é realizada com palavras, senão algo mais fundamental, ou seja, que encontrar as palavras oportunas, no momento oportuno, é acção, deixando de parte a informação ou comunicação que levem. Só a pura violência é muda, razão pela qual nunca pode ser grande». Sublinhados meus.

2 Tratando-se de uma opção de cariz claramente pessoal, não posso, entretanto, deixar de referir três biografias a que tive acesso, a primeira das quais considero magistral: For the Love of the World, de Elisabeth Young-Bruehl; Hannah Arendt, de Wolfgang Heuer; e Hannah Arendt, de Sylvie Courtine-Dénamy, referidas, de resto, na bibliografia geral.

3 ARENDT, Hannah- What Remains? The Language Remains: A Conversation with Günter Gaus, in The Portable Hannah Arendt, pp.5-6: «Gaus: O seu interesse pela teoria política, pela acção e comportamento políticos, está hoje no centro do seu trabalho. A esta luz, o que encontrei na sua correspondência com o Professor Scholem parece particularmente interessante. Aí, escreveu, se me permite citá-la, que "não estava interessada na [ sua] juventude, nem em política nem em história". Professora Arendt, como judia, emigrou da Alemanha em 1933. Tinha então 26 anos. Está o seu interesse pela política – o fim da sua indiferença em relação à política e à história – ligada a estes acontecimentos?

Arendt: Sim, concerteza. A indiferença já não era possível em 1933. Já não era possível até antes. (...) O que aconteceu então era monstruoso, mas foi ofuscado pelas coisas que aconteceram mais tarde. Isto foi um choque imediato para mim, e a partir daí senti-me responsável.»

4 CANTISTA, Maria José- O Político e o Filosófico no Pensamento de Hannah Arendt, in Separata da Revista Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, II Série, Volume XV-XVI, Porto 1998-99, p.47: «Repor a verdade acerca do homem, significa ocupar-se da fundacionalidade do político, reabilitando o pensamento, numa denúncia das falácias metafísicas com que a filosofia se identificou. Tal desconstrução metafísica mostrará que não é a questão do ser, mas a questão do mundo que suscita o pensamento. A admiração inicial, o famoso thaumadsein não conduz o pensamento ao ser, antes nos leva do mundo ao pensamento para de novo a ele retornar. O pensamento do político, em vez de pensar o ser a partir do pensamento, pensa o pensamento a partir do mundo. Ao substituir a acção pela contemplação, a filosofia tal como a metafísica tradicional a entendeu, exilou o pensamento do mundo e deixou em desabrigo o viver em conjunto, o ser em comum. Comprometido o sentido da pluralidade e da amizade, é o sentido dialógico do humano que se eclipsa e, com ele, o pensamento como experiência do mundo. Se queremos reaver o sentido do homem, é, pois, pelo político que temos que começar.»

5 O quadro de que, a partir daqui, apresentarei um esboço, não tem quaisquer pretensões de carácter exaustivo. A passos largos, pretende apenas apresentar um cenário histórico que facilite a compreensão do carácter sem precedente do mal totalitário, tal como Arendt o entendeu.

6 PLATÃO – A República, II, 380 a: «Deus, uma vez que é bom, não é a causa de tudo, como pensamos comummente; não é causa senão de uma pequena parte do que acontece aos homens e não o é da parte maior, uma vez que os nossos bens são muito menos numerosos do que os nossos males, e não devem ser atribuídos senão a ele, enquanto que para os nossos males é preciso procurar uma causa, mas não Deus.»

7 PLATÃO- Ménon, 77c – 78b : «Sócrates: Não te parece, meu caro, que todos desejam o que é bom?

Ménon: De modo algum.

Sócrates: Na tua opinião, alguns desejam o que é mau?

Ménon: Sim.

Sócrates: Queres dizer que eles olham o mal como bom, ou que, conhecendo-o por mau, não deixam de o desejar?

Ménon: Um e outro caso parecem-me possíveis.

Sócrates: O quê? Ménon, julgas tu que um homem, conhecendo o mal pelo que ele é, possa continuar a deseja-lo?

Ménon: Realmente.

Sócrates: A que chamas desejar? é desejar que a coisa lhe aconteça?

Ménon: Que lhe aconteça, sem dúvida.

Sócrates: Mas esse homem, imagina ele que o mal é vantajoso para aquele que o experimenta, ou sabe que é nocivo para aquele em que se encontra?

Ménon: Há quem imagine que o mal é vantajoso; e há outros que sabem que ele é nocivo.

Sócrates: Mas crês que aqueles que imaginam que o mal é vantajoso, o conhecem como mal?

Ménon: Não creio.

Sócrates: É evidente, consequentemente, que esses não desejam o mal, que não o conhecem como mal, mas que desejam o que tomam por um bem, e que é realmente um mal; de modo que aqueles que ignoram que uma coisa é má, e que a crêem boa, desejam manifestamente o bem. Não é?

Ménon: Parece que sim.

Sócrates: Mas quê? os outros que desejam o mal, tal como dizes, e que estão persuadidos que o mal prejudica aquele em que se encontra, sabem sem dúvida que ele lhes será prejudicial?

Ménon: Necessariamente.

Sócrates: Não pensam eles que aqueles a quem prejudicamos, são de lamentar, nisso que os prejudicamos?

Ménon: Necessariamente, ainda.

Sócrates: E que quando se é de lamentar, é-se infeliz?

Ménon: Creio que sim.

Sócrates: Ora, há alguém que queira ser a lamentar e infeliz?

Ménon: Não creio, Sócrates.

Sócrates: Se, portanto, ninguém quer ser tal, também ninguém quer o mal. (...) »

8 BÍBLIA

Génesis, III 4-7: «A serpente replicou-lhe:"vocês não têm que morrer. De maneira nenhuma! O que acontece é que Deus sabe que, no dia em que comerem desse fruto, abrirão os olhos e ficarão a conhecer o mal e o bem, tal como Deus". A mulher pensou então que devia ser bom comer do fruto daquela árvore, que era apetitoso e agradável à vista e útil para alcançar a sabedoria. Apanhou-o, comeu e deu ao seu marido que comeu também. Nesse momento, abriram-se os olhos de ambos e deram-se conta de que andavam nus.»

Livro de Job, XIII 23-29: «Que maldades ou pecados tenho eu? Mostra-me os meus crimes e pecados! Por que é que desvias de mim o olhar e me tratas como teu inimigo? Precisas de meter medo a uma folha caída ou correr atrás de uma palha seca? Fizeste contra mim um relatório de rebeldias e continuas a fazer-me pagar por erros da infância. Prendes os meus pés com cadeias e observas todos os meus passos, anotando em pormenor toda a minha vida. Mas a minha vida desfaz-se como madeira podre, como roupa que a traça vai roendo.»

Eclesiastes, IX 2-3: «Para todos existe o mesmo fim: para o inocente e o culpado, para o bom e para o mau, para o que oferece sacrifícios e para aquele que não os oferece, para o justo e para o injusto, para o que faz juramento e para o que tem medo de o fazer. Este é o pior dos males deste mundo, que todos tenham o mesmo fim. O coração dos humanos está cheio de maldade, a ignorância domina-os completamente durante a vida e, depois de tudo, acabam por morrer.»

Romanos, VII 14-24: «Sabemos que a lei vem de Deus, mas eu sou um homem fraco, vendido como escravo ao pecado. Nem me compreendo, pois não faço aquilo que queria fazer e faço o mal que detesto. [ ...] Encontro pois em mim esta regra: quando quero fazer o bem, faço o mal. No meu intimo, quero seguir a lei de Deus, mas vejo que no meu corpo há uma outra lei que está contra a minha inteligência. É isso que me torna prisioneiro da lei do pecado que está no meu corpo. Que infeliz eu sou! Quem me libertará deste corpo que me leva à morte?»

9 JONAS, Hans- Le Concept de Dieu après Auschwitz, pp. 34-35 : «Acontecendo actos verdadeiramente monstruosos e inteiramente unilaterais que os humanos feitos à Sua imagem cometem, por vezes, em relação a outros humanos sem a falta destes últimos, deveríamos esperar que o bom Deus quebrasse de vez em quando a sua própria regra, a extrema retenção do seu poder, e que interviesse por um milagre salvador. [ ...] Agora, eu digo: se ele não interveio, não foi, de modo algum, porque o não quisesse, mas porque não podia. Proponho, por razões inspiradas pela experiência contemporânea de modo determinante, a ideia de um Deus que durante um tempo - o tempo que dura o processo continuado do mundo - se despojou de todo o poder de ingerência no curso físico das coisas deste mundo; de um Deus que, portanto responde ao choque dos acontecimentos contra o seu ser próprio, não com "uma mão forte e um braço estendido"- como o recitamos todos os anos, nós judeus, para comemorar a saída do Egipto - mas perseguindo o seu fim não cumprido com um mutismo penetrante.»

10 Cfr. AGOSTINHO – Confissões, VII, 12

11 RICOEUR, Paul- O Mal, p.32: «Agostinho sustenta que o mal não pode ser entendido como substância, pois pensar o "ser" é pensar "inteligivelmente", pensar "uno", pensar "bem". Então, o pensar filosófico exclui todo o fantasma do mal substancial. Por outro lado, nasce uma nova ideia do nada e do ex nihilo, contida na ideia de uma criação total e sem excesso. Ao mesmo tempo, um outro conceito negativo, associado ao precedente, toma o lugar de uma distância ôntica entre o criador e a criatura que permite falar de deficiência daquele que é criado enquanto tal; em virtude desta deficiência, torna-se compreensível que criaturas dotadas de livre escolha possam "declinar-se" longe de Deus e "inclinar-se" em direcção ao que tem menos ser, em direcção ao nada.»

12 Cfr. AGOSTINHO – De Civitate Dei, XI, 22

13 LEIBNIZ, W. G. - La Cause de Dieu, pp.433-34 : «A sabedoria infinita do Todo-Poderoso, juntamente com a sua bondade imensa, fez com que, feitas as contas, nada poderia ter sido criado de melhor do que o que foi criado por Deus. (...) Consequentemente, sempre que uma coisa nos parece repreensível nas obras de Deus, é preciso lembrar que não sabemos o suficiente, e acreditar que um sábio, que a compreendesse, julgaria que nós não poderíamos mesmo desejar nada de melhor.»

14 LEIBNIZ, W.G. – Essais de théodicée, I, p. 116: «há uma imperfeição original na criatura antes do pecado, porque a criatura é limitada essencialmente, donde se segue que ela não pode saber tudo, pode enganar-se e cometer outras faltas.»

15 ESPINOZA, Baruch- Ética, Apêndice ao Livro I, p. 67: «Muitos, com efeito, têm o hábito de argumentar assim. Se todas as coisas seguiram da necessidade da natureza de um Deus totalmente perfeito, donde vêm então tantas imperfeições existentes na Natureza? Quer dizer, donde vem que as coisas se corrompam até ao fétido, que sejam disformes até à náusea, donde vêm a confusão, o mal, o pecado, etc. É fácil responder. Porque a perfeição das coisas deve estimar-se somente pela sua natureza e poder, e elas não são, então, nem mais nem menos perfeitas porque agradam aos sentidos do homem ou os ofendem, porque convêm à natureza humana ou lhe repugnam.»

16 HEGEL, G.W.F. - La Raison dans l"Histoire, cap.1, p.68: «O mal no universo, incluindo o mal moral, deve ser compreendido e o espírito pensante deve reconciliar-se com o negativo. [ ...] Esta conciliação não pode ser alcançada senão pelo conhecimento do afirmativo no qual o negativo se reduz a qualquer coisa de subordinado e de ultrapassado e esfuma-se. É a tomada de consciência, por um lado, da verdadeira finalidade do mundo e, por outro lado, da realização desta finalidade no mundo: perante esta ultima finalidade e a sua realização no mundo, o mal não pode subsistir e perde toda a sua validade. [ ...] A razão não pode eternizar-se ao pé das feridas infligidas aos indivíduos, porque as finalidades particulares se perdem na finalidade universal.»

17 RICOEUR, Paul- Op. cit., p.39 : «A negatividade é, a todos os níveis, o que constrange cada figura do Espírito a jogar-se no seu contrário e a gerar uma nova figura que ao mesmo tempo suprime e conserva a precedente, segundo o sentido duplo do Aufhebung hegeliano. A dialéctica faz assim coincidir, em todas as coisas, o trágico e o lógico: é necessário que alguma coisa morra para que alguma coisa maior nasça.»

18 VE I, p. 18

19 VILLA, Dana -Politics, Philosophy, Terror, p. 34 : « Arendt reconhece que [ o declínio da fé] desempenhou pelo menos um papel negativo em tornar o totalitarismo possível, contudo, contesta a ideia de que o pecado do "orgulho" (no sentido Agostiniano tradicional) esteja por trás da experiência totalitária. O que é crucial não é simplesmente a hubris e a aspiração à omnipotência manifesta na ideia de mudar a natureza humana, mas o papel desempenhado pela submissão, tanto no caso dos líderes como no dos seguidores.»

20 OT III, p. 201

BERNSTEIN, Richard J. – Hannah Arendt and the Jewish Question, p. 143: «Se Arendt está a ser justa com Kant é discutível. Mas é claro que Arendt crê que Kant não alcançou o que ela pretende significar com "mal radical". A análise de Kant é baseada no pressuposto de que há motivos compreensíveis que podem explicar o mal radical. Mas é isso, precisamente, que Arendt está a por em causa. É por isso que diz que "não temos nada em que nos apoiar em ordem a compreender um fenómeno que, contudo, nos confronta com a sua esmagadora realidade."»

21 CC, pp. 28-29

22 VILLA, Dana- Op. cit., p. 194 : « O desejo de Platão e Aristóteles de pensar a acção como uma espécie de fazer- de "reformular" a acção política de modo a que ela aparecesse tão pouco afectada pelo facto da pluralidade humana como a actividade de fabricação- não se esgota nas suas escolhas dos fenómenos políticos que consideravam valer a pena estudar. Pelo contrário, levou-os a criar uma óptica sobre a vida política na qual a liberdade, sentido e objectivo da acção, eram reinterpretadas de modo a que os efeitos "desestabilizadores" da pluralidade humana (e da cidadania democrática ou republicana) pudessem ser contidos, senão mesmo eliminados.»

23 Op. cit., p. 197: « A vontade de apagar a pluralidade, de ultrapassar a "casualidade" da espontaneidade, de identificar liberdade e controlo, juízo e episteme, legitimidade e obediência a uma "lei superior", tudo são características da tradição Ocidental do pensamento político (tal como Arendt o entende) e o totalitarismo.»

24 CH, p. 247

25 Op. cit., p. 243

26 Op. cit., p. 242

27 VE I, p. 37

28 CH, p. 250

29 Op. cit., p. 242

30 CC, p. 30

31 CH, p.116

32 CC, p. 38.

33 Op. cit., p. 30

34 Op. cit., p. 31

35 CH, pp. 247-248

36 BOWEN-MOORE, Patricia, Hannah Arendt"s Philosophy of Natality, p. 128: «O homo faber de Arendt é o fabricante do mundo. O homo faber de Marx, contudo, é o homem histórico enquanto distinto do homem socializado (isto é, animal laborans, estritamente falando). No que respeita à actividade política do homo faber, Marx vê o homem histórico como o fabricante da história sempre que é instrumental em efectuar uma mudança na estrutura social através de meios violentos (revolução). A relação entre a violência e as acções do homo faber reside na assunção de que agir na natureza sempre requer uma ruptura com o que é natural. Seguindo esta linha de pensamento, se a história é vista como um processo natural, então a violência é uma interrupção necessária no curso natural das coisas. Marx estava convencido de que a violência era a parteira da história e que a acção política- no modo de homo faber- é primordialmente violência: daí a equação de Marx da história com a política. Arendt explica que a convicção de que a acção política é essencialmente violência e que a história é feita pelo homem "não se deveu à ferocidade gratuita de um temperamento revolucionário, mas tem o seu lugar na filosofia da história de Marx, que sustenta que a história (...) pode ser feita pelo homem com inteira consciência do que está a fazer. (...) Ele viu a feitura da história em termos de fabricação; o homem histórico era, para ele, primordialmente, homo faber."»

37 CC, p. 39

38 Op. cit., p. 57

39 KATEB, George- Politics, Conscience, Evil, p. 77: « Para Arendt, nem a aspiração ao poder total nem a possessão de poder total ou quase total é suficiente para indicar a presença do totalitarismo. O tirano intoxicado pelo exercício do poder e o líder decidido pela completa falta de escrúpulos - dois tipos que podem parecer mais faccilmente diferenciáveis teoricamente do que nos exemplos históricos que os apresentam para análise e juízo - não são inteiramente descontínuos com a natureza humana comum. (...) O ponto é que, para Arendt, a liderança totalitária não é para ser explicada assim. O totalitarismo é um fenómeno distinto porque as raízes dos seus actos não são explicáveis por nenhum dos modos comuns que usamos para dar sentido ao que pode perturbar-nos.»

40 OT III, p. 203

41 KATEB, George- Op. cit., pp. 55-57: « Arendt está a dizer que o totalitarismo- pelo menos nas suas primeiras aparições nas formas de nazismo e estalinismo- aconteceu contra todas as probabilidades; que foi uma espécie de milagre, um milagre negro. Ela é clara em relação a que, por ter acontecido uma vez, um fenómeno pode mais facilmente acontecer de novo. Difícil, é a primeira vez: tão difícil que o fenómeno- neste caso o totalitarismo- tem de permanecer inexplicável. (...) O Totalitarismo (...) é inexplicável num duplo sentido. [ Por um lado] não é redutível ao "produto" de causas antecedentes, [ e, por outro] , resiste à atribuição retrospectiva de qualquer tipo de racionalidade. (...) Em suma, o totalitarismo não é concebível, não é conceptualmente possível, não é reconhecível superficialmente, não é experiencialmente familiar, não é capaz de receber adesão e cooperação, sem várias gerações de anti-semitismo, outras formas de racismo e imperialismo (não apenas em África). Ao mesmo tempo, o totalitarismo não é a sua derivativa causal ou produto lógico. (...) O totalitarismo é da responsabilidade da Europa: esta é, certamente, uma das ideias principais que Arendt nos deixa, apesar de nunca pôr a questão assim tão cruamente.»

42 NT, p. 73

43 Op. cit., p.74

44 AJ, p. 203

45 OT III, p. 204

46 VILLA, Dana R. – Arendt and Heidegger, The Fate of the Political, p. 255: «Como Arendt salienta em "Ideologia e Terror", nenhum regime anterior acalentou a ideia de identificar a fonte trans-humana da autoridade directamente com a ordem política: todos tinham visto a necessidade de estruturas de autoridade mediadoras, artificiais - por exemplo, a lei positiva - como a necessária "tradução" do imutável ius naturale, sem as quais esta lei seria irrelevante para a esfera dos assuntos humanos. A distinção resultante entre justiça e legalidade é superada por um regime totalitário que varre o cascalho das autoridades tradicionais e pretende "estabelecer o reino directo da justiça sobre a terra".»

47 VILLA, Dana R.- Politics, Philosophy, Terror, p.17: «(…) O que o totalitarismo assume é a possibilidade de dominar seres humanos inteiramente ("dominação total"), de tal modo que já não possam interferir com a "lei do movimento"- da Natureza ou História- que o movimento totalitário procura acelerar. Tais leis do movimento (...) providenciam o "supersentido" dos movimentos totalitários, uma meta-narrativa com a qual tentam por a realidade de acordo. O objectivo do totalitarismo não é senão refazer a humanidade e o mundo de tal modo que "os factos" reflictam a verdade do supersentido ideológico.»

48 NT, p. 205

49 Cf. Nota 41

50 VILLA, Dana – Op. cit., p. 35: « Porque o alvo do totalitarismo não é, como o exemplo nazi parece mostrar, a eliminação do "sub-humano". É, antes, a transformação do humano- deve notar-se- não num "super homem" que faz as suas próprias leis, alheias aos ditados da moralidade tradicional, mas numa espécie animal cujos membros, impiedosamente ensinados da sua própria superfluidade, obedecem passivamente aos ditados das (supostas) leis da Natureza ou História. Este é o único e sem precedente mal do totalitarismo- um sistema "no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos"- e a razão pela qual Arendt sente que deve ser rotulado de "absoluto" ou "radical".»

51 NT, p. 102

52 Em resposta a uma carta de Gershom Scholem, em que este se indignava com o conceito debanalidade do mal que, em Eichmann in Jerusalem, Arendt introduzira, e em que confessava, desgostoso, não poder levar a sério a nova tese, escreve Arendt: «Mudei de ideias e já não falo de mal radical. (...) É, de facto, a minha opinião que o mal não é nunca "radical", que é apenas extremo, e que não possui nem profundidade nem qualquer dimensão demoníaca. Pode crescer desmesuradamente e devastar o mundo inteiro, precisamente porque se espalha como um fungo na superfície. É "desafiador do pensamento" porque o pensamento tenta alcançar alguma profundidade, ir às raízes, e no momento em que se preocupa com o mal, é frustrado porque não há nada. Essa é a sua "banalidade". Só o bom tem profundidade e pode ser radical.» in JP, pp. 250-51

53 Hannah Arendt – Karl Jaspers Correspondance 1926 – 1969

54 VILLA, Dana- Op. cit., p. 33: « A concepção arendtiana do mal radical apoia-se num específico (e, para alguns talvez, idiossincrático) conjunto de pressupostos normativos. Como a sua resposta a Voeglin demonstra, seria errado atribuir-lhe uma concepção robusta de natureza humana, que pressupusesse um hiato entre a essência imutável e a existência contingente. Ainda assim, Arendt pressupõe uma variante existencialista do ponto rousseauniano/kantiano sobre a liberdade e a espontaneidade.»

55 OT III, p. 200

56 p. cit., p. 13

57 NT, p. 108

58 Op. cit., p. 113

59 OT II, p. 18

60 NT, p. 105

61 OT III, p. 224

62 Op. cit., p.214

63 KATEB, George- Op. cit., p.76: « O totalitarismo é genocídio, um genocídio metódico "num quadro de ordem legal". O totalitarismo é a matança metódica de certas populações em grande escala (envolvendo milhões) levada a cabo deliberadamente e como questão política pelos que estão no poder, cujo objectivo primordial é matar essas populações, e mata-las apesar de não serem hostis nem mesmo dissidentes, ou obstáculos para um qualquer objectivo de utilidade, ou estarem na posse de bens de qualquer tipo de que os seus assassinos precisem, queiram ou cobicem. Para o observador racional o totalitarismo é tão gratuito quanto metódico: combina a mais extrema eficácia de método com o que parece ser a total ausência ou vazio de motivo.»

64 BERGEN Bernard J. – The Banality of Evil, p. 155: « Arendt vê que se quisermos agarrar a natureza única do totalitarismo, temos de inverter o nosso entendimento tradicional do terror: as imagens tradicionais do terror são imagens de pessoas demasiadamente paralisadas para se mover; mas para o totalitarismo, o terror é a arma da lei que chama os homens à acção. Mas a chamada à acção não é uma chamada a agir, que pode apenas ser dirigida a indivíduos. Onde os indivíduos são apenas a corporização da lei do movimento, estão apenas a transportar [ motion-carrying] o terror que é a sua lei.»

65 NT, p. 103

66 Op. cit., p. 100 

67 Op. cit., p. 103

68 OT III, p. 215

69 VILLA, Dana R. – Arendt and Heidegger, The Fate of the Political, p. 258: «A decisão de exterminar os judeus - de eliminar, de uma vez por todas, essas testemunhas das origens plurais do Ocidente Greco-Judeo-Latino ele mesmo - segue, como Lacoue-Labarthe enfatiza, uma lógica que é, estritamente falando, espiritual ou metafísica. É a decisão de identificar a heterogeneidade com um povo - ver os judeus como o elemento heterogéneo por excelência - e "eliminar" a ameaça colocada por esta heterogeneidade exterminando a sua corporização exteriorizada. A diferença que precede e assombra a identidade, e que desestabiliza todas as tentativas de institucionalizar a identidade, produz uma vontade violenta naquele "povo"- os alemães- que são os mais ameaçados pela artificialidade da sua própria identidade nacional. De que outro modo se compreenderia a paradoxal declaração de Hitler, "o judeu em cada um de nós", uma declaração que, de uma só vez, reconhece a "primordial" contaminação" da identidade e ordena a aniquilação de uma alteridade [ otherness] exteriorizada, substancializada?»

70 OT III, pp.211-212

71 NT, p. 111

72 AMIEL, Anne- Hannah Arendt, Política e Acontecimento, p.31: « O princípio totalitário e o movimento que implica formam um conceito novo da realidade e do poder, com, podemos insistir, um antiestadismo (o Estado impõe a rigidez de uma estrutura, de um quadro geral, de um território), um antinacionalismo (os Arianos não são, por exemplo, os alemães, e o movimento supera a nação e os interesses nacionais), e um anti- utilitarismo.»

73 NT, p. 113

74 OT III, p. 148

75 AJ, p. 206

76 OT II, pp.17-18

77 EJ, p. 10

78 OT II , pp.9-10

79 Op. cit. , pp.16-17

80 KATEB, George- Op. cit., p. 59: «A grandeza de Arendt reside, precisamente, na sua honestidade. Põe de lado tudo o que a deixaria a si e aos seus companheiros étnicos confortáveis, se esse conforto é comprado pela auto-ilusão ou meio-conhecimento. No seu juízo, o anti-semitismo moderno depende do carácter do judeu moderno. Nunca diz estupidamente que os judeus mereceram o que tiveram no século XIX e XX. Antes, tenta mostrar que dados certos padrões de vida judaica, a resposta do anti-semitismo não estava fora da esfera da normal maldade humana ou da pouco imaginativa resistência ao estrangeiro ou dessemelhante.»

81 OT II, p.24

83 Op. cit, p.26

83 Loc. cit.

84 Op. cit., pp.27-28

85 Op. cit., p. 28

86 EJ, p. 28

87 OT II, p.32

88 Op. cit., pp. 32-33

89 NT, p. 42

90 VILLA, Dana R.- Politics, Philosophy, Terror, p.11: « À medida que o século XX se encaminha para o fim, é difícil evitar ser tomado pela náusea moral. (...) Qualquer concepção de dignidade humana que parte do pressuposto do progresso moral da espécie foi estilhaçada por estes acontecimentos. Montaigne, o observador céptico da humana e persistente idiotice moral, e não Kant, mostrou-se certo. Nenhuma escondida mão da providência ou natureza nos conduz.»

91 OT III, pp. 180-181

92 Cf. Nota 41

93 CC, p. 198 (o sublinhado é meu).

94 BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 137: «Em 1945, Arendt declarou: "o problema do mal vai ser a mais fundamental questão da vida intelectual na Europa do pós-guerra"(EU,134). Enganou-se. A maioria dos intelectuais evitou qualquer confronto directo com o problema do mal. Mas ele tornou-se fundamental para Arendt. Voltou a ele repetidamente, e ainda estava a lutar com ele na altura da sua morte.»

95 NT, p.67

96 CH, p. 100

97 RENDT, Hannah- Labor, Trabalho, Acção- Uma Conferência, in De la Historia de la Acción,p.95

98 TAMINIAUX, Jacques- La Fille de Thrace et le Penseur Professionnel, p. 42 : « Porque ela não é, no final de contas, mais do que aquilo a que Marx chamava o "metabolismo com a natureza", esta actividade de trabalho no sentido de labor não pode senão partilhar as características do ciclo vital no qual se inscreve: repetitividade, multiplicação, interdependência dos corpos, anonimato fundamental do agente. Entendida à luz da vida, a questão "Tu quem és, tu que penas?" (...) não saberia pôr-se, porque uma singularidade insubstituível não poderia surgir num processo cíclico regido pela repetição do mesmo.»

99 Cf. M0LOMB"EBEBE, Munsya- Le Paradoxe, p.30

100 CH, p. 117

101 ESLIN, Jean-Claude – L"Obligée du Monde, p. 59 : «Em Arendt, o homem é, antes de mais, poder de se arrancar à naturalidade, de deixar a tradição. Participar, tomar parte no mundo não é nunca natural, não é enraizar-se, mas arrancar-se. Mas este arrancamento é também uma pertença, não é uma subjectivização, não visa um isolamento, mas prossegue no seio de um mundo comum.»

KOHN, Jerome- Evil and Plurality, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 147: «Hannah Arendt estava interessada no que as pessoas fazem e nos modos como o que fazem afecta o mundo, para o melhor e para o pior. O centro, aqui, não é a terra natural mas o mundo humano, um artifício erguendo-se entre os homens e mulheres, continuamente afectado pelo que eles fazem para florescer e perdurar, e também pelos modos como pensam em ordem a reconciliarem-se com a sua existência. Os seres mortais não pediram nem chegam preparados para viver neste mundo. É, antes, como se emergissem de lugar nenhum, aparecendo primeiro como estranhos, depois comunicando e interagindo, até, mais ou menos gradualmente, desaparecerem. Estas noções de aparecer e desaparecer são relativas não à Terra mas ao mundo comum, tal como não são exactamente o mesmo que viver e morrer. As vidas humanas passam-se à face da Terra, mas relacionam-se, distinguem-se e são recordadas congruentes com as condições e limitações de um mundo sofrido[ enduring] . Diferentemente da terra natural, o artifício humano não pode ser entendido como se fosse, em algum sentido, necessário, ou o seu curso determinado.»

102 OT III, p. 194

103 CH, p.128 (o sublinhado é meu e remete, como se verá, para a noção arendtiana do pária, de que tratarei adiante. Interessa apenas sublinhar, neste momento, que tanto o pária como o animal laborans representam aqueles a quem o mundo é tirado e a quem só resta a natureza, como preocupação, num caso, como consolação, no outro).

104 Cf. MOLOMB"EBEBE, Munsya- Op. cit., pp.29: «Sem começo nem fim, poder-se-ia dizer, por analogia ao tempo humano, que este campo pré-individual corresponde à eternidade, devendo esta ser compreendida não como uma transcendência metafísica, mas como uma eternidade puramente material que a finitude das nossas categorias humanas de conhecimento não pode integrar. Do mesmo modo que não se pode falar aqui, propriamente, de espaço, mas de puro continuum material, também não há tempo enquanto temporalidade, mas puro continuum "atemporal".»

105 CH, p.110

106 Op. cit., p. 30

107 BPF, p. 42

108 CH, p. 31

109 Op. cit, p. 112

110 Op. cit., pp.109-110

111 BIBLIA, Eclesiastes 1-9;11 in Op. cit., p. 227

112 Op. cit., p. 141

113 BPF p 48

114 p. cit., p. 46

115 PF, p. 47

116 WEN-MOORE, Patricia- Op. cit., p.112: « a mundaneidade outra [ otherworldliness] do primeiro Cristianismo é uma forma de não-mundaneidade [ worldlessness] que inverteu a antiga crença numa imortalidade terrena ganha somente através da grandeza de feitos e palavras ou atingida através de um tipo de imortalidade mental experimentada pelo filósofo. A não-mundaneidade inerente a esta mundaneidade outra dos primeiros cristãos é tematicamente estruturada, primeiro, pela consciência histórica que via o mundo como temporal e, como todas as coisas temporais, perecendo com o tempo, e em segundo lugar, pela atitude abraçando o carácter profundamente sagrado da vida que enfatizava a importância da imortalidade individual. Ambas as atitudes devem a sua centralidade e duração ao modo como o credo entendeu o nascimento, a vida, a morte e a ressurreição de Cristo.»

117 CH, pp. 338-339

118 Op. cit., pp. 340-341

119 VE I, pp.177-178

120 Op. cit., p. 179

121 CH, p.33

122[ Aqui até as montanhas parecem apenas repousar sob a luz das estrelas; são lenta e secretamente devoradas pelo tempo; nada é para sempre, a imortalidade deixou o mundo para encontrar um lar incerto na escuridão do coração humano que tem ainda a capacidade de recordar e dizer: para sempre] - seguindo a tradução da própria autora em BPF, p. 44

123 Op. cit., p. 44

124 Cf. RICOEUR, Paul- Lectures 1, pp.43-65

125 MOLOMB"EBEBE, Munsya- Op. cit., p. 46: « O mundo objectivo não se limita, para Arendt, ao artifício humano material. Ele compreende igualmente o artifício humano imaterial: as leis, os costumes, os tabus,... em suma, todas as disposições inventadas pelo homem para estabilizar e regular as relações entre os indivíduos.»

126 ESLIN, Jean-Claude – Op. cit., p. 18 : «O mundo é, evidentemente, uma noção anti-idealista, um "anti-objecto", uma noção que evita a "objectividade". A palavra diz da resistência de um espaço que é mais que uma sociedade ou que um universo.»

127 CH, p. 110

128 Op. cit., p. 158

129 Op. cit., p. 191

130 TAMINIAUX, Jacques- Op. cit., p.44 : « O mundo não é de nenhum modo a natureza como meio de vida, e ainda menos o universo. Um mundo sustem-se num conjunto de artefactos conquistados à natureza, mas resistindo à torrente do seu ciclo. É neste ponto que se marca o desacordo mais nítido entre Arendt e Marx. (...) Com Marx, Arendt sustenta que os humanos se tornam tais inventando os artefactos. Contra ele, ela sustenta que esta invenção não tinha como finalidade assistir o ciclo da vida. Tem por fim muito mais o resistir a este ciclo para opor ao seu eterno retorno a consistência, a estabilidade, a permanência de um habitat no seio do qual o "quem" pudesse aparecer. (...) É preciso um mundo para que uma vida possa aparecer como vida de alguém.»

131 CH, p.62

132 KATEB, George- Op. cit., p. 173: « Ser alienado do mundo pode não querer dizer opressão, ou violência física ou mental. Os párias podem estar confortáveis, embora normalmente o não estejam. O que importa finalmente, contudo, é ter um mundo: o lugar das mais altas oportunidades existenciais bem como dos maiores perigos. Dá aos indivíduos identidade e hipótese de reconciliação, mas pode também pedir que se abdique de confortos e da própria vida.»

133 CH, p.279

134 Op. cit., p.283

135 Op. cit, pp. 285-286

136 Op. cit., p.284: «Este processo, que é o "processo de vida da sociedade", como lhe chamava Marx, e cuja capacidade de produzir riqueza só se pode comparar com a fertilidade dos processos naturais nos quais a criação de um homem e de uma mulher bastará para produzir por multiplicação qualquer numero dado de seres humanos, continua sujeito ao princípio da alienação do mundo, princípio do qual surgiu; (...) Por outras palavras, o processo de acumulação de riqueza, tal como o conhecemos, estimulado pelo processo da vida e estimulando, por sua vez, a vida humana, só é possível se se sacrificam o mundo e a própria mundaneidade do homem.»

Cf. Parte I, Cap. I, 3

137 Op. cit., pp. 280-281

138 BOWEN-MOORE, Patricia- Op. cit., p.118: «A introspecção cartesiana mantém o mais alto ideal da ciência, a ponto de ambos exaltarem o modelo do raciocínio matemático: conhecimento produzido pela mente independentemente da estimulação externa e também independente de um mundo definido pelas suas aparências apreendidas primeiramente pelos sentidos. O senso comum era agora visto como uma faculdade interna sem qualquer relação ao mundo e o raciocínio de senso comum foi sujeito à estrutura do conhecimento matemático.»

139 CH, p.289

140 Op. cit., pp. 304-305

141 VE I, p. 33

142 Op. cit., p. 37

143 Op. cit., p. 38

144 Op. cit., p. 40

145 Op. cit., pp. 40-41

146 Op. cit., p. 42

147 PORTMANN, Adolf- Das Tier als soziales Wesen, p. 127, in Op. cit., p.43

148 Loc. cit.

149Op. cit., p. 44

150 Op. cit., p. 34

151 RV, p. 122

152 CH, pp.61-62

153 VE I, p. 34

154 Op. cit., p. 33

155 CH, p. 37

1546ROVIELLO, Anne-Marie – Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt, p. 26: «A singularização, e a diversidade que ela implica, constituem a mediação necessária para que a ideia de uma identidade do humano passe do invisível para o visível, ou seja, para a realidade do mundo.»

157RV, p. 123

158 ILLA, Dana- Op. cit., pp. 200-201:« É tentador rejeitar a tónica que Arendt põe na esfera pública como um espaço de criação de sentido (e a sua crítica da era moderna como responsável pela "perda" ou "destruição" deste espaço) como romântica sem emenda. Antes de o fazermos, contudo, devemos lembrar-nos da experiência sobre a qual Arendt construiu o seu pensamento político. Esta experiência não era a de pares "actuando juntos, concertadamente", como na polis grega; era, antes, a experiência do terror sob o totalitarismo. A tónica, virtualmente de uma vida inteira, na esfera pública e na vida da acção cresceu do seu encontro com esta negação radical da realidade pública e da liberdade humana. O seu interesse na liberdade "positiva" da acção política (enquanto oposta à liberdade "negativa" dos direitos civis) nasceu de um contexto no qual as forças políticas totalitárias tiveram pouca dificuldade em ultrapassar as fronteiras protectoras da lei positiva e em alistar massas "sem raízes" e "sem lar" na sua causa.»

159 HTS, p. 19

160 RV, p. 93; e na página 90, escreve ainda: «se o pensamento se fecha em si mesmo e encontra o seu objecto solitário na alma- isto é, se se converte em introspecção- produz claramente (enquanto permanece racional) uma semelhança de poder ilimitado pelo simples acto de isolamento do mundo; deixando de estar interessado no mundo, monta um bastião frente ao único objecto "interessante": o eu interior. No isolamento atingido pela introspecção, o pensamento torna-se sem limites, uma vez que já não é molestado por nada exterior. (…) A autonomia do homem torna-se hegemonia sobre todas as possibilidades; a realidade só choca e ressalta.»

161 HTS, p. 32

162 LAZARE, Bernard- Le Fumier de Job, p. 8, in ROVIELLO, Anne-Marie – Op. cit., p. 50

163 RV, p.106

164 OT II, p.151

165 Loc. cit.

166 Op. cit., p.152

167 BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 103: «O que levou, então, Arendt ao Sionismo? Foi a sua firme convicção de que o projecto de assimilação social dos judeus europeus era um completo desastre. A aspiração à emancipação judaica tinha sido confundida com a tentativa desesperada de assimilar, baseada na hipocrisia e na auto-ilusão. A judiaria europeia estava a descobrir que a assimilação não era protecção contra o anti-semitismo – ou o extermínio.»

168 RV, pp. 92-93

169 OURTINE-DÉNAMY, Sylvie – Hannah Arendt, p.55: «De Lazare, Arendt guardará os conceitos de arrivista e de pária e o desdobramento deste ultimo em pária consciente e pária inconsciente. Como ele, pensa que a emancipação transformou os judeus em párias. Como ele, denuncia os judeus de excepção e o "acosmismo" do pária, privilegiando a "tradição oculta" ilustrada por Heine, Rahel, Aleichem, Lazare, Kafka ou mesmo Chaplin, "a tradição de uma minoria de judeus que não quiseram tornar-se arrivistas, que preferiram o estatuto de pária consciente". Como ele, retira ensinamentos da questão Dreyfus e empenhar-se-á num processo, o de Eichmann em Jerusalém. Talvez também conserve, através de Jaspers, o tema do cosmopolitismo e a ideia de uma federação entre Estados. Finalmente, o tema da necessidade da rebelião, o apelo aos judeus para a acção.»

170 AJ, p. 66

171 BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 25: «Arendt nunca subscreveu aquilo a que chamava a "ideologia Sionista" (ou qualquer outra ideologia). Não foi certamente movida por qualquer apelo religioso ao retorno a Sião. Nem partilhava a atracção e entusiasmo emocionais de tantos sionistas seculares. O Sionismo era o único movimento sério que dava valor à necessidade de uma solução política para a questão judaica. Contudo, Arendt era ambivalente em relação ao Sionismo, porque tinha sérias reservas relativamente à política sionista. As suas dúvidas e reservas viriam a tornar-se progressivamente manifestas.»

173 RV, p. 120

173 AJ, p. 65

174 Op. cit., p.50

175 BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 182: «Ela tinha uma reacção quase visceral contra toda e qualquer forma de ideologia, incluindo a ideologia sionista. Era absolutamente crítica do que detectava como uma dominação sinistra da ideologia sionista revisionista. Castigou os seus companheiros sionistas por falharem em encarar honestamente a necessidade de negociações e cooperação judaico-árabe directa. Avisou contra o crescimento do nacionalismo e chauvinismo judeus. Opôs-se à ideia de um estado-nação judeu porque baseado num perigoso e ultrapassado conceito de soberania nacional. Acusou os seus companheiros sionistas de terem abandonado e traído a promessa revolucionária do movimento sionista.»

176 AJ, p. 97 (o sublinhado é meu)

BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 105: «Como Bernard Lazare, Arendt ela própria (muito antes de Eichmann in Jerusalem) estava a tornar-se pária entre o seu próprio povo. Estava perturbada, não só pela viragem sionista para o revisionismo, mas também alarmada pelas pressões crescentes no sentido de uma conformidade ideológica, uma conformidade que não tolerava quaisquer opiniões discordantes e em conflito. Na sua busca do sentido da política, realçou o papel da opinião (doxa)- especificamente a pluralidade e conflito de opiniões, que são debatidas em espaços públicos entre pares. Isto era, para ela, o coração da política autêntica e da liberdade pública.»

177 JP, p.180

178 AJ, p. 61

179 Op. cit., p. 62

180 PHA, p.33

181 Op. cit., p. 41

BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., pp.84-85: «Os reparos de Arendt têm relevância para recentes controvérsias a respeito do liberalismo e do comunitarismo. Uma das razões pelas quais estes emaranhados debates podem parecer tão abstractos e académicos é que os assuntos são frequentemente discutidos sem relação a experiências políticas concretas, o tipo de experiências que são tão manifestas nas reflexões de Arendt. Ninguém pode acusá-la de ser uma comunitária- ou, pelo menos, o tipo de comunitário que atenua a irredutibilidade, conflito e pluralidade de perspectivas e opiniões no interior da vida política comum. Mas a eterna suspeita de Arendt relativamente ao liberalismo é, em parte, motivada pela sua própria experiência do que significa concretamente ser tratado como um ser humano abstracto que presumivelmente tem (ou deveria ter) direitos, na sua "nudez abstracta de não ser senão humano".»

182 PHA, p.32

183 AJ, p. 7

184 PHA, p. 34

185 AJ, p. 77

186 PHA, p. 35

187 AJ, p. 79

188 PHA, p. 37

189 Op. cit., p. 42

BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 78: «A experiência de Arendt enquanto judia sem pátria proveu-a de uma análise aguçada dos ameaçadores paradoxos e instabilidade que acontecem quando massas de refugiados e pessoas sem pátria são "criadas" por erupções políticas. Ela considerava a súbita emergência de novas massas sem pátria um dos problemas mais intratáveis do século XX- um problema que sobreviveu aos regimes totalitários. O perigo deste novo fenómeno de massas de ausência de Estado [ statelessness] era um dos temas que tinha em mente quando, na conclusão de As Origens do Totalitarismo, escreveu que "as soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de fortes tentações que aparecerão de cada vez que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou económica de um modo digno do homem".»

190 VE I, p. 20

191 BERGEN, Bernard- Op. cit., p. 49: « Arendt não queria dizer nem que o mal era banal, nem que a Solução Final era apenas mais um dos males banais que afligem a humanidade; ela queria dizer, antes, que Eichmann, como qualquer ser humano, possuía a capacidade comum de se ver a si mesmo pensando no significado do que ele é. Mas ele é também incomum em que, não pensando sobre o que é, tinha passado do tipo de mundo no qual os humanos geralmente vivem, para outro tipo de mundo que era organizado à volta de um eixo de assassínio.»

Vinte anos mais tarde, de resto, em Thinking and Moral Considerations, p. 7, Arendt escrevia que por banalidade do mal não queria referir-se a « teoria ou doutrina, mas a algo bastante factual, o fenómeno de actos maus, cometidos numa escala gigantesca, que não podiam ser referidos a qualquer fraqueza, patologia ou convicção ideológica no sujeito, cuja única distinção pessoal era uma talvez extraordinária superficialidade.»

VILLA, Dana R. – The Banality of Philosophy, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 180: «A resposta de Arendt a esta questão, por meio de uma meditação sobre a natureza "sem resultados" [ "resultless"] do pensamento em geral e sobre a qualidade "dissolvente" do pensamento de Sócrates em particular, é um qualificado sim. Ao pôr fora de ordem a nossa dedução quotidiana de acções e juízos de princípios prontos-a-usar, o pensamento interrompe todo o fazer e inicia um diálogo interno entre mim e eu-próprio. Foi este o diálogo a que Sócrates tentou incitar e que Arendt remete para a pluralidade interna da própria consciência.» Este aspecto será desenvolvido adiante.

192 VE I, p. 29

193 Op. cit., p. 80

194 KOHN, Jerome – Op. cit., p. 162: «As consequências filosóficas do que Kant fez são fundamentais para [ Arendt] . Ao colocar severos limites ao alcance do conhecimento humano, Kant tinha, para Arendt, libertado o pensamento daquilo a que ela chama por vezes a "tirania" da verdade. Para ela, a importância de tal pensamento liberado não pode ser forçada, especialmente em tempos de transição, quando os padrões morais tradicionais perderam a sua validade e o mundo humano já não é estável, ainda que, como vimos, ele não traga "resultados".»

195 CANTISTA, Maria José- A Significação do bios politikós ou o regresso ao pensamento em Hannah Arendt: «Na opinião da Autora, a significação auroral do agir e da genuinidade do entido da experiência marcam a autêntica pensabilidade, a significação primordial que desde cedo distingue do sentido inerente ao quadro teorético da verdade lógico-veritativa, sempre secundário e relativo àquela. Assim sendo, o pensar é a própria teorização do agir, está em intrínseca relação com ele. O pensar é a actualidade mesma do agir humano, essência ek-sistente ou ek-staticidade, cujo horizonte é a historicidade (daí o carácter narrativo do pensamento que se conta em stories e não na History) e cuja morada é a linguisticidade. O pensamento regressa assim ao seu ethos, enraíza-se no seu lugar natural- no seu ser no mundo: é palavra e é acção.»

196 VE I, p. 30

197 ARENDT, Hannah- Philosophie et Politique, in Cahiers du Grif, p.91

198 VE I, p. 219

199 Op. cit., p. 95

200 Op. cit., p. 202

201 OT III, p. 217

202 Não é por acaso, portanto, que nas alturas em que Eichmann se viu obrigado a confrontar-se com a realidade dos campos, as suas "convicções" vacilassem. Nas palavras do próprio: « Não podia; não podia; era demais. Os gritos... estava demasiadamente aborrecido (...) E fui-me embora (...) Tinha sido demais. Estava acabado. (...) Tinha que desaparecer.» In EJ, p.88

203 ESLIN, Jean-Claude – Op. cit., p. 49 : «Este desligamento do mundo, esta perda de pontos de ligação, que ameaça o sentido do interesse pessoal e o instinto de conservação, que conduz a que nos contentemos com os resultados mais abstractos, conduz também a fugir da "facticidade do mundo real" a favor da coerência, bem maior, do mundo fictício. A fuga das massas perante a realidade é uma condenação do mundo no qual elas são obrigadas a viver. Em suma: uma gnose. As massas "sedentas de coerência" renunciam elas próprias à pluralidade por uma visão conformista e simplificada das coisas. (...) Um círculo perverso cria-se entre os chefes totalitários que, no seu desprezo pelos factos, estão prontos a defender qualquer tese, e a credulidade das massas, prontas a acreditar em qualquer mentira, desde que seja melhor do que o mundo real.»

204 OT III, p. 218

205 Op. cit., p. 218

206 EJ, p. 135

207 Op. cit., p. 289

208 MAY, Larry- Socialization and Institutional Evil, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 89: «Na minha interpretação de Arendt, a socialização institucional nas burocracias transforma os indivíduos em dentes de uma engrenagem; isto é, os indivíduos acabam por pensar em si próprios como anónimos. Como tal, escapam às confrontações face-a-face consigo mesmos e com as consequências das suas acções, que são necessárias ao desenvolvimento do sentido da responsabilidade.»

209 EJ, p.106: «O problema era de como ultrapassar, não tanto a sua consciência, mas a piedade animal pela qual todos os homens normais são afectados na presença do sofrimento físico. O truque usado por Himmler- que aparentemente era, ele próprio, bastante afligido por estas reacções instintivas- era muito simples e, provavelmente, muito eficaz; consistia em virar estes instintos do avesso, dirigindo-os ao eu. Assim, em vez de dizer: que coisas horríveis fiz às pessoas!, os assassinos poderiam dizer: que coisas horríveis tive de fazer para cumprir os meus deveres, quão duramente pesou a tarefa sobre os meus ombros!»

210 VE I, p. 216

BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. cit., pp. 72-73: «Se a ausência de pensamento e o mal partilham uma "interdependência", então o pensamento e a moralidade estabelecem uma espécie de mutualidade exibida como a dimensão ética da vida do espírito. Deste último comentário não deve de modo algum inferir-se que o pensamento resulta sempre num local moral, porque o pensamento, por definição, é uma busca de sentido e não de resultados. Devemos, antes, compreender esta última declaração enquanto significando que a actividade de pensar é tal que a sua experiência realça as sensibilidades humanas sobre o bem e o mal, porque, enquanto o pensamento pode não produzir "resultados", o seu sub-produto é consciência. Inversamente, onde o pensamento atrofiou e o seu sub-produto desapareceu, o resultado é a ausência de pensamento e isto, de acordo com Arendt, prepara o caminho para o mal.»

211 VE I, p. 205

212 Op. cit., p. 190

213 Op. cit., p. 191

214 Op. cit., p. 193

215 Op. cit., p. 200

216 Op. cit., p. 207

217 Loc. cit.

218 Op. cit., p. 208

219 KOHN, Jerome- Op. cit., p. 169: «Para Arendt, isto é a descrição das personalidades morais num sentido filosófico, daqueles que, confrontados com o errado, dizem simplesmente "não posso". Para estas pessoas, que vivem consigo próprias, as proposições morais são de si mesmas evidentes, "evidentes para si mesmas". Mas este "não posso" é inteiramente negativo, e, no que ao agir erradamente no mundo diz respeito, aqueles que o dizem sobretudo retraem-se de agir. Um dos aspectos mais marcantes que Arendt marca nestas lições é que as proposições morais reflectem o eu ao eu, e por isso são tudo menos "selfless". (...) Há uma experiência de pluralidade interior em tal moralidade, mas não é o mundo de outros seres humanos que está "entre", ou que é de interesse primordial para alguém ser alguém. Para os filósofos e para a filosofia em geral, de acordo com Arendt, esta é uma experiência "marginal" ou de "fronteira", mas em Sócrates atingiu uma validade exemplar. Sócrates sofreu efectivamente em vez de cometer o mal: tendo apostado a sua vida na sua crença na bondade do diálogo interior de pensamento, escolheu morrer pela sua convicção.»

220 VE I, p. 210

221 Op. cit., p. 213

222 VILLA, Dana R. – The Banality of Philosophy, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 184: « Numa conferência sobre o seu trabalho em Toronto, em 1972, Arendt repudiou violentamente a ideia de que a sua análise da "banalidade do mal" demonstrava que "Eichmann está em cada um de nós". O seu objectivo não era sugerir que, dadas as circunstâncias certas, somos todos Eichmanns potenciais (nada, do seu ponto de vista, podia estar mais longe da verdade). Antes, o sentido segundo o qual a sua descrição da personalidade de Eichmann tinha mais relevância, tem a ver com a atrofia geral nos nossos poderes de juízo. À medida que a distância da "participação no juízo e na autoridade" (Aristóteles) aumenta na sociedade de massas, há um declínio claro da nossa capacidade de "pensar sem regras", isto é, de julgar assuntos morais e políticos. Com este declínio, vem uma crescente confiança nos vários "pilares" (princípios e juízos de valor prontos-a-usar) que nos permitem navegar na vida quotidiana sem termos de parar e pensar. (...) O que Arendt teme não é o "Eichmann em cada um de nós", nem sequer a "perda de valores", mas a crescente qualidade automática dos nossos juízos.»

223 VE I, p. 217

224 BERGEN, Bernard- Op. cit., p. 40: « Arendt ouviu esta declaração de Eichmann não como uma declaração sem originalidade, que os nazis faziam desde Nuremberga, mas como levantando a questão de quem ele pensava que era naquele tribunal de Jerusalém- uma questão que abriu o caminho para a compreensão de quem ele era quando cometera os seus actos mortíferos mais de uma década antes.»

225 VILLA, Dana R. – Politics, Philosophy, Terror, p. 46: « De facto, o tema primordial de Arendt [ em Eichmann in Jerusalem] é a inadequação da consciência tal como foi concebida tradicionalmente (e popularmente), pelo menos quando se trata de compreender o "novo tipo de criminoso" representado por Eichmann. Este tema faz de Eichmann in Jerusalém um trabalho de filosofia moral, pelo menos implicitamente. Não é de modo algum uma preocupação meramente teórica, uma vez que lida directamente com o tema de como preservar a responsabilidade por acções naquelas circunstancias em que a luta da consciência com "motivos de base" já não pode ser honestamente (ou rigorosamente) invocada. E, como a natureza do mal político no século vinte demonstra, essas circunstancias tornaram-se cada vez menos excepcionais.»

226 EJ, p. 26

227 Op. cit., p. 114

228 Op. cit., p. 123

229 BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. cit., p.74: «A ausência de pensamento de Eichmann testemunha o facto de que ele nem tinha um companheiro no pensamento, nem tentou fazer do pensamento ou do pensar um amigo. Se a mente é de facto a própria "sensação de estar vivo", Eichmann é um dos seus mais patéticos representantes. Nele, a actividade de pensar tinha atrofiado, permitindo assim uma realidade ficcionada completada com uma nova linguagem de clichés, truísmos, vulgaridades e slogans vazios, para se afirmar a si mesmo como um novo código de julgamento. No momento em que Eichmann permitiu a possibilidade de os seus instintos maus ditarem o exercício das suas acções, (...) tornou todos os juízos pessoais sobre a realidade dada inteiramente vazios de significado e despidos de todo o conteúdo moral. Eichmann, por isso, não só não era adequado para a experiência do político tal como Arendt o descreve, como o não era para as aspirações da vida teorética. Eichmann traiu a sua natalidade enquanto dimensão política e ética da existência humana. Para o dizer do modo mais desagradável possível, Eichmann era um pigmeu mental e moral.»

230 EJ, p. 125

231 Op. cit., p. 175

232 Richard Bernstein faz referência a, pelo menos, dois deles: Isaiah Trunk, na sua obra Judenrat (New York: Stein and Day, 1972) e Walter Z. Laqueur, um dos mais severos críticos de Arendt, que na sua obra Hannah Arendt in Jerusalem: The Controversy Revisited, escreve: « Mas se em muitos casos circunstâncias atenuantes podem ser encontradas, se alguns líderes, de facto, se comportaram de maneira heróica, o fenómeno Judenrat, como um todo, adquiriu uma conotação negativa, e bem. A partir do momento em que os Conselhos Judaicos foram usados pelos nazis para ajudar na "solução final", a sua acção tornou-se indefensável.» in BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 163

233 EJ, pp. 125-126 (o sublinhado é meu)

234 BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 159: «Acredito, também, que a razão pela qual a reportagem de Arendt é perturbadora é porque nos obriga a confrontar questões dolorosas acerca do significado do mal no mundo contemporâneo, o colapso moral da sociedade respeitável, a facilidade com que o assassínio em massa se torna um comportamento "normal" e "aceitável", a fragilidade da dita voz da consciência, as formas subtis de cumplicidade e cooperação que acompanham os actos mortíferos. Estes, infelizmente, não são aspectos exclusivos do horror nazi. Permanecem connosco, e exigem que lutemos contra eles uma e outra vez.»

235 VE I, p. 19

236 COURTINE-DÉNAMY, Sylvie – Op. cit., p. 62: «Demonstramo-lo suficientemente: Hannah Arendt não foi uma judia assimilada e, apesar de referências frequentes à tradição grega ou à tradição cristã, já não é permitido por em causa a sua relação com o judaísmo, com a Shoa e com a criação do Estado de Israel; ela conheceu o exílio, pertence à tradição oculta dos Heine, Lazare, Chaplin, Kafka "que, como ela, não foram nem homens de gueto, nem assimilados, mas antes palhaços, párias na praça pública"(J-C. Eslin). Tendo-lhe sido recusado o acesso ao domínio público enquanto judia, atacada enquanto judia, ela defendeu-se enquanto judia e procurou uma lei, um domínio público com valor para a humanidade inteira, sem excluir ninguém. Os seus primeiros livros foram, precisamente, dedicados à vida de uma judia, Rahel, e ao anti-semitismo e é por isso que as acusações de "má judia", contra ela pronunciadas após a publicação de Eichmann à Jerusalem, em 1963, merecem que nelas nos detenhamos: não só porque nos parecem erradas e tendenciosas, mas igualmente porque estiveram na origem da perda, provisória ou definitiva, de amigos caros a Hannah Arendt, como Hans Jonas ou Kurt Blumenfeld, sem falar de Gershom Scholem, ela que não vivia senão para a amizade, o falar-conjunto.»

E, já em Rahel Varnhagen, podia ler-se: «um pedaço de realidade está escondido nas respostas inteligentes das outras pessoas. Ela [ Rahel] precisava da experiência dos outros para suplementar a sua própria. Para esse propósito, as qualificações particulares dos indivíduos eram indiferentes. Quantas mais pessoas houvesse que a compreendessem, mais real ela se tornaria.» (Rahel Varnhagen, p.98)

237 OT III, p. 224

238 EJ, p. 49

239 Op. cit., p. 86

240 Op. cit., p. 136

241 Op. cit., p. 137

242 VILLA, Dana- Op. cit., p. 52: « O "novo tipo de criminoso" representado por Eichmann não é nem um fanático do partido nem um robot doutrinado. Antes, é o indivíduo que participa solicitamente nestas actividades de um regime criminoso, enquanto vendo-se a si mesmo como isento de qualquer responsabilidade pelas suas acções, quer pela estrutura organizacional, quer pela lei. Através desta auto-ilusão (e do "distanciamento da realidade" que ela promove), um indivíduo pode evitar com sucesso confrontar-se alguma vez com a moralidade das suas acções. Como o caso Eichmann amplamente demonstra, onde "a lei é a lei"- onde, por outras palavras, a ausência de pensamento reina- as faculdades do juízo e de imaginação moral atrofiam e, depois, desaparecem.»

243 OT III, p.205

244 EJ, p. 252

245 VP, p.8

246 Op. cit., pp.14-15

247 Op. cit., p. 17

248 Op. cit., p.18

249 Op. cit., pp. 21-22

250 Op. cit., p. 28

251 Op. cit., p. 39

252 Op. cit., p. 42

253 Op. cit., p. 51

ROVIELLO, Anne-Marie – Op. cit., pp.138-139: «A fé na veracidade dos testemunhos, que parte do pressuposto de que esses testemunhos têm sentido, deve ser considerada uma razão suficiente para as verdades de facto que não podem ser submetidas à verificação dos sentidos ou à demonstração racional. Arendt recupera a ideia escotista de uma fides acquisita ideia que, aliás, também encontramos no jovem Kant, e que prefigura a ideia transcendental do Gemeinsinn que o filósofo define como o pressuposto de um "contrato originário" no qual cada indivíduo se teria comprometido a respeitar a máxima da comunicabilidade e, portanto, da veracidade. (...) É essa fé adquirida que é arruinada pelo sistema totalitário, o qual torna real aquilo que não tem sentido para o homem. A própria fiabilidade do real, condição para os testemunhos sobre o real, é destruída. E só aparentemente existe uma contradição entre essa dúvida radical e a "fé" ingénua na realização de todas as profecias dos chefes totalitários. Esta fé no poder de uma qualquer ficção se tornar real, é o reverso da perda da fé numa realidade capaz de resistir ao poder da pura ficção.»

254 VP, p.53

255 Op. cit., p.11

256 Op. cit., p.12

257 EJ, pp.231-32

258 CHAUMONT, Jean-Michel- A singularidade do universo concentracionário segundo Hannah Arendt, in Hannah Arendt et la Modernité, p. 89 «Pode-se dizer que para ela, não é tanto o extermínio, e ainda menos o genocídio dos judeus, que representa um acontecimento sem precedentes, senão a própria instituição concentracionária, tanto na Alemanha nazi como na Rússia comunista. A partir daí o problema da "singularidade do extermínio dos Judeus pelo regime nazi" não constituía verdadeiramente um problema: nem esta singularidade, nem mesmo a dos "crimes e genocídio nazis" mas antes a dos "crimes totalitários" parecia-lhe à época cientificamente pertinente e politicamente importante de estabelecer.»

259 OT III, p.173

260 Op. cit., p. 179

261 VILLA, Dana R.- Op. cit., p. 31: «A lição a retirar dos campos não é a de que o homem animal moral nunca existiu realmente (...) mas a de que não existe uma natureza indelével em que possamos apoiar-nos como garantia de que experiências semelhantes não acontecerão no futuro.»

262 OT III, p. 195

263 Op. cit., p. 185

264 BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 150: «Porque "grandeza satânica" é, ela própria, uma categoria humana - demasiado humana. O mal radical do totalitarismo não pode ser nem mitificado, nem esteticizado. [ ...] Jaspers critica Arendt por chegar quase a enveredar pelo "caminho da poesia" ao descrever os crimes nazis. "Da maneira como o exprime, quase toma o caminho da poesia. E um Shakespeare nunca seria capaz de dar forma adequada a este material - o seu sentido estético instintivo falsificá-lo-ia - e é por isso que não o podia tentar."(C, 62) A referência de Jaspers a Shakespear é esclarecedora, porque foi Shakespeare que criou alguns dos maiores e irresistíveis personagens exemplificadores de "grandeza satânica". [ ...] Porque as construções retóricas [ de Arendt] sugerem que a alternativa à banalidade do mal é o mal que é teológica e esteticamente caracterizado como "grandeza satânica", podemos ser enganosamente levados a pensar que ela identifica mal radical com grandeza satânica. Assim, numa das suas primeiras tentativas de explicar e clarificar o que quer dizer quando fala de banalidade do mal, escreveu: " Eichmann não era Iago nem Macbeth. [ ...] Era pura ausência de pensamento - algo de modo algum semelhante à estupidez - que o predispôs a tornar-se num dos maiores criminosos daquele período(EJ, 287)"»

265 CHAUMONT, Jean-Michel – Op. cit., p. 93: « Este princípio de des-ligação sistemática entre os actos e os acontecimentos será uma das constantes mais intoleráveis da existência no seio dos campos (…) Erigida em lei suprema de existência, este arbitrário pressupunha a destruição dos verdadeiros direitos dos homens, por um lado, e permitia, por outro, assegurar a renovação do "stock de pessoas susceptíveis de serem enviadas para os campos".»

266 OT III, p.186

267 ROVIELLO, Anne-Marie – Op. cit., p.166: « A ameaça fundamental que pesa sobre esses indivíduos cuja existência, actos e palavras, não dependem de nenhuma jurisdição, reside no facto de a sua exclusão do mundo jurídico-politico "ser como um convite ao homicídio". Efectivamente, esse homicídio é sem consequências para o assassino, visto que ele mata alguém cuja existência não é reconhecida por nenhuma lei. Do ponto de vista jurídico, o homicídio pura e simplesmente não aconteceu.»

268 NT, p. 106

269 VILLA, Dana R.- Op. cit., p.23: « Há e tem de haver um abismo entre o sistema dos campos de concentração e o sistema penal; de outro modo, uma irredutível remanescência do sujeito jurídico é preservada e a possibilidade de poder incontido vedada.»

270 É de salientar- a nota e o sublinhado são meus- a insistência de Arendt, não tanto na especificidade das vítimas, mas na sua comum inocência. Com efeito, mais do que reflectir sobre os grupos particulares escolhidos para a experiência da dominação total, interessa-lhe acentuar que o universo concentracionário determina a possibilidade de um mundo que se abre à escravização do homem, continuada e total. Esta insistência, recorrente em O Sistema Totalitário, encontramo-la também em Eichmann em Jerusalém, quando recusa a denúncia dos "crimes contra os Judeus", sustentada pela acusação.

CHAUMONT, Jean-Michel – Op. cit., p. 106-107: « Quando Arendt diz temer os efeitos de uma focalização sobre o facto da judeidade das vítimas, é verosímil que ela esteja a reagir nomeadamente contra esses banalizadores que, no próprio interior da comunidade judaica, inscrevem sem mais as câmaras de gás como um novo episódio numa história sempre repetida de perseguições. Ora, Arendt tinha neste ponto argumentos fortes a opor. Primeiro, dizia ela, os judeus não foram as únicas vítimas das câmaras de gás (...). Seguidamente, Arendt acreditava firmemente que se a Alemanha nazi tivesse sido vitoriosa, outras categorias de vítimas teriam sido exterminadas. (...) Finalmente, ela insistia com justiça em distinguir o extermínio dos judeus pelos nazis de outros crimes sofridos pelos judeus anteriormente fazendo valer o carácter sem precedente das suas práticas exterminadoras.»

271 OT III, p.190

272 PHA, pp.36-37

273 VILLA, Dana R.- Op. cit., p.24: «A "pessoa moral" não é nem o sujeito legal de direitos, nem o concreto, único indivíduo humano. Talvez a aproximação mais correcta do que Arendt quer dizer seja dada pela ideia de actuação conscienciosa ou moral. Ser um agente consciencioso requer um ambiente no qual a acção moral não é nem suicida nem sem sentido. Mas o mundo dos campos destrói os pressupostos de um tal ambiente.»

274 OT III, p. 191

275 Op. cit., p.180

276 VILLA, Dana R.- Op. cit., p. 19: « A morte no mundo conduz à recordação da aparência distintiva, em palavras e actos, do falecido. Viver e morrer nos campos, contudo, é ser privado da aparência no mundo, é ser absolutamente apagado da esfera das aparências e (portanto) da memória. Aqui, a morte já não é nossa.»

277 OT III, p. 191

278 Op. cit., p.192

279 ROVIELLO, Anne-Marie- Op. cit., p. 126: « A pluralidade é deste modo pervertida, transforma-se numa atomização; o indivíduo deixa de receber dos outros a revelação de "quem" ele é. A ruptura do contacto com o mundo, a ruptura da comunicação com os outros, provoca a ruptura do contacto consigo próprio (...) tendo como pano de fundo a sua inserção no mundo comum, que lhe garante a integridade pessoal.»

280 OT III, p.192

281 VILLA, Dana R.- Op. cit., p. 27: « Seguindo a destruição dos direitos e da consciência, a experiência totalitária na dominação total foca as suas energias disciplinares no material recalcitrante do próprio indivíduo. (...) Desde o uso de carros de transporte de gado até à raspagem das cabeças, falta de roupa suficiente, descanso ou comida, e labor físico extenuante, os campos eram máquinas gigantescas para a manipulação do corpo humano, apelando às "infinitas possibilidades de sofrimento" como meio para demolir as últimas reservas de personalidade e espontaneidade.»

282 OT III, p.194

283 VILLA, Dana R.- Op. cit., p. 20: «Porque só quando os seres humanos interiorizaram a sua própria superfluidade, quando se submeteram em silêncio ao poder, é que a aspiração totalitária se torna realizável. Assim, os campos de concentração e o doutrinamento ideológico são "experiências" em dominação que apontam a uma forma qualitativamente nova. São experiências não no medo em si, mas em pôr à prova os limites da plasticidade humana.»

284 OT III, p. 193

285 CH, p. 60

286 OT III, p.195

287 VILLA, Dana R.- Op. cit., p.13: « Privados desta capacidade, atirados para um mundo onde experienciavam a sua própria superfluidade como uma realidade diária, horária mesmo, as vítimas do terror totalitário apresentavam-se a Arendt como a mais palpável evidência imaginável de que os seres humanos podiam ser transformados em "animais pervertidos" através das novas artes da dominação total.»

288 ROVIELLO, Anne-Marie- Op. cit., p. 165: « Criar um homem novo equivale portanto a criar o não-humano, destruindo aquilo que em cada indivíduo excede a "espécie humana". No sistema totalitário esse mais torna-se demasiado. É o próprio indivíduo que está a mais.»

289 OT III, p. 197

290 ROVIELLO, Anne-Marie- Op. cit., p. 167: « Aquilo que é consumado com a destruição da personalidade psíquica, mas que já se inicia com a destruição da personalidade jurídica, é a destruição do que Arendt designa noutro texto por "quem": a fonte interior própria a cada indivíduo, que se manifesta por meio de actos e palavras, mas também por comportamentos e, talvez, antes de mais nada, por uma fisionomia, pela expressividade de um rosto.»

BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 97: «A dominação total envolve matar a pessoa jurídica, a pessoa moral e obliterar a consciência. Mas há um sentido segundo o qual a própria expressão "dominação total" é enganadora. Porque sugere que a dominação total é dominação sobre seres humanos. Mas o totalitarismo não para no "domínio despótico sobre os homens". A "lógica" do totalitarismo luta pela produção de um sistema no qual os homens são supérfluos.»

291 VILLA, Dana- Op. cit., p. 187: « Por outras palavras, o "aperfeiçoamento" da espécie humana implica a destruição da humanidade, como conceito, tanto quanto como a realidade fenomenológica de indivíduos únicos.»

292 OT III, p.173

293 Os campos são, convém insistir, a instituição central dos regimes totalitários e condição da sua permanência. Tal como escreve em Op. cit., p. 196: « A inutilidade dos campos, a confissão cínica da sua anti-utilidade, não são senão uma aparência. Na realidade, eles são mais úteis à salvaguarda do poder do regime do que qualquer uma das suas outras instituições.»

294 Op. cit., p. 182

295 AJ, pp. 204-205

BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 92: «Para indicar quão anti-utilitária e irracional a maquinaria de extermínio parece ser, podemos considerar o exemplo dos judeus húngaros. Na Primavera e Verão de 1944, era bastante claro que os nazis estavam a perder a guerra. Não só estavam a perder a guerra como necessitavam desesperadamente de todas as fontes disponíveis para se defenderem a si próprios em duas frentes. Contudo, nenhum esforço foi poupado para transportar judeus húngaros para os campos de extermínio. No Outono de 1944, 400.000 judeus tinham sido enviados para a morte.»

296 AJ, p. 152

BERNSTEIN, Richard J. – Op. cit., p. 99: «Foi descendo ao Inferno, para o abismo que se tinha aberto, foi "insistindo nos horrores" dos campos de concentração, que Arendt pôde ver tão lucidamente o que é fundamental e vital para a acção,para a política e para viver uma vida humana. A isto era o que o seu mentor, Karl Jaspers, teria chamado uma desses "experiências-limite" que nos permitem quebrar com os clichês, os preconceitos do senso-comum e por aí descobrir o que de outro modo não discerniríamos- o que é constitutivo da nossa humanidade.»

297 KATEB, George- Op. cit., p. 150: « Podemos insistir no carácter único do totalitarismo enquanto genocídio metódico e legal e ainda assim compreender que nas experiências que lhe prepararam o caminho, e nas experiências que as suas vítimas sofreram, podemos encontrar semelhanças com outros horrores da vida moderna. Arendt não insiste no facto de que as experiências que prepararam o caminho são terríveis apenas porque prepararam o caminho. Nem sugere que as experiências da desumanização podem acontecer apenas nos campos de morte ou numa vida diária aterrorizada pela ditadura totalitária. Apesar do totalitarismo ser uma resposta sistemática a uma dada situação histórica, elementos dessa situação estão por todo o lado, à nossa volta, e são passiveis de continuar e até piorar. De modo similar, elementos da resposta totalitária podem emancipar-se do sistema e aparecer e reaparecer em várias combinações. Arendt sustenta que o totalitarismo não poderia ter surgido a não ser que um grande numero de pessoas civilizadas sentissem profundamente que eram supérfluas, ou abandonadas e perdidas, ou perdidas e sem significado. Mas certamente estes sentimentos nunca estão fora de causa ou da consciência no mundo moderno.»

298 EJ, p. 273

299QLP, p. 136

300 VILLA, Dana R. – Arendt and Heidegger,The Fate of the Political, pp. 269-270: «Desperta para os perigos de um mundo pos-totalitário, tecnológico (...) [ Arendt] acentuou as profundas e irrevogáveis consequências da perda de realidade da esfera pública. Esta perda é moldada pela estrutura emergente da própria modernidade (a "ascensão do social"), e torna qualquer apelo directo à praxis, ou à "esfera pública", infinitamente problemática, senão mesmo irónica. É precisamente a impossibilidade de uma esfera pública genuína da pos-modernidade (...) que leva Arendt a sublinhar o agonismo sobre o consenso, a resistência sobre a docilidade, e as "causas perdidas" do "espírito revolucionário" sobre as políticas normalizadoras da democracia representativa. O seu ponto, como crítica do liberalismo (e da modernidade) é semelhante ao de Foucault: não é que tudo seja mau, mas tudo é perigoso.»

301 CH, pp. 135-136

302 Op. cit., p. 130

303 Op. cit., p. 137

304 Op. cit., p. 139

305 Op. cit., p. 170

306 Op. cit., p. 140

307 BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. cit., p. 127: «Em poucas palavras, Arendt argumenta, Marx não só falhou em distinguir consistentemente entre labor e trabalho, como também indicou que a "verdadeira esfera da liberdade" consistia no tempo de lazer no qual a criatividade de cada um pode aparecer apenas após as exigências da vida terem sido superadas. Na perspectiva do homem socializado a verdadeira liberdade é actividade produtiva entendida como actividade criativa.»

308 CH, p. 140

309 Op. cit., p. 132

310 CHAUMONT, Jean-Michel –Op. cit., p. 101« A sociedade de consumo de massa tende, exactamente como os campos de concentração mas com uma notável economia de violência, a transformar os indivíduos em espécimes indiferenciados da espécie animal homem.»

311 BPF, pp. 89-90

312 EJ, p. 273

313 VILLA, Dana R. – Op. cit., p. 189: «Tudo o que Arendt tem a dizer sobre a acção e a esfera pública é enquadrado nos termos de uma análise da des-mundanização [ de-worldling] do mundo público na era moderna. O facto de onde começa é a perda desta realidade específica, aquilo a que chama "o eclipse do mundo comum público". Isto não quer dizer que Arendt negue que nós, modernos tardios, tenhamos uma esfera pública; antes, o seu ponto é que esta esfera "perdeu o seu poder" de nos reunir, de "relacionar e separar" como um mundo deveria. Na nossa esfera pública, ser e aparência dificilmente coincidem: a pluralidade de perspectivas necessária para um tal espaço de revelação fragmentou-se e enfraqueceu na uniforme da sociedade de massas.»

314 OT III, p. 225

315 Op. cit., p. 226

316 Loc. cit.

317 Op. cit., p. 229

318 HEIDEGGER, Martin- Qu"appelle-t-on penser? , p.36

319 CH, pp. 258-260

320 BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. cit., p. 147: «O perdão, para Arendt, funciona politicamente quando é dirigido tanto ao actor quanto à acção. (...) A noção arendtiana de perdão aplica-se àqueles que agem inadvertidamente, quer dizer, àqueles que realizam acções que prejudicam relações politicamente estabelecidas, mas sem intenção criminosa ou mal propositado.»

321 OT III, p.232

322 Não apenas uma, certamente; porventura – no âmbito dos objectivos do presente trabalho – apenas a mais relevante.

323 Não darei conta, portanto, senão dos conceitos que mais imediatamente importam à temática de que este trabalho pretendeu oferecer uma leitura.

324 HEIDEGGER, Martin- Être et Temps, pp. 61-62

325 Op. cit., § 14, pp.99-100

326 TAMINIAUX, Op. cit., p.30 : «Aí, onde Heidegger separa a praxis autêntica de toda a comunicação e cuja manifestação reserva à ciência íntima e silenciosa do Gewissen, Arendt insiste, inversamente, no elo essencial entre práxis e lexis.»

327 Quero referir-me, aqui, ao papel atribuído por Arendt ao perdão.

328 CANTISTA, Maria José- O Político e o Filosófico no pensamento de Hannah Arendt, in Separata da Revista da Faculdade de Letras, Filosofia, II Série, Vol. XV-XVI, 1998-99, p.45: «Pensar o político com um olhar purificado de toda a filosofia, eis, em síntese, o propósito de H. Arendt: reaver esse grande dom socrático, por oposição a Platão que pensa sempre o político a partir de um fracasso, isto é, da condenação do Mestre que não soube persuadir, nem os mestres, nem mesmo os amigos. Ressuscitar o interesse pela polis, sem medos da fragilidade do agir humano, sem recurso às pseudo-seguranças de uma filosofia especulativa.»