" UM AÇOREANO"

  • Teófilo braga - O Grande Esquecido

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

   

 

Remember me

[ © Porto, "Palácio de Cristal", 2004. Imagem em pedra no "Jardim das Rosas" ]

[ © Foto digital tratada. Levi Malho]

 


 

  Teófilo braga - O Grande Esquecido

 

      Quando se tenta compreender alguém que nunca se poderá conhecer, um retrato pode não ser uma pista segura para atingir o que de singular se encerra no seu espírito e se busca descobrir para além das simples aparências que os olhos sempre distantes mais separam do que aproximam.
    Ao observar a fotografia de Joaquim Teófilo Braga, tirada em 1872, aos 29 anos, vê-se alguém que parece fitar-nos com determinação e serenidade, numa postura distante. Na altura, as grandes tempestades da vida já tinham passado por ele e estava casado, com uma situação razoavelmente estável e uma vida familiar que se adivinhava feliz e de grande compensação afectiva face aos problemas que as suas lutas políticas e literárias sempre lhe trouxeram.

   São raras as fotos de Teófilo Braga, mas mostram sempre o mesmo rosto sereno e ar confiante na compostura formal em que o olhar incisivo é o que mais se salienta no rosto de quem se confronta com o destino. Nem sei porquê, mas dir-se-ia que qualquer luz num misto de ingenuidade e confiança emana da sua figura, o que não se coaduna com tanto que se tem escrito a seu respeito. E nem sempre muito favoravelmente. Mas quem tem o direito de julgar uma alma e logo uma inteligência tão dotada como a sua? Assim sereno, parece ter parado ali um só instante para logo sair da foto e continuar atarefadíssimo a lida interrompida que foi toda a sua vida.

     Ele que foi tipógrafo quando era ainda adolescente, poeta, filósofo, historiador, ensaísta, investigador, professor, político, etnógrafo estudioso das tradições populares, reunia em si um tão vasto saber que não é de admirar terem forçosamente de haver hiatos, contradições, dificuldades, uma evolução de pensamento ao longo das décadas em que empreendeu uma obra pioneira, tanto mais de uma envergadura e abrangência que ultrapassa o que se possa esperar de um só espírito!

     Muitos anos passados, quando o escritor e ensaísta, Gomes Monteiro
[i], que muito o admirava e por isso tem de ser lido com critério senão com séria reserva, o visitou em sua casa na Travessa de Santa Gertrudes à Estrela, em Lisboa, em 1922, Teófilo Braga tinha já quase 80 anos, vivia completamente só e estava já quase totalmente cego.
    Quantos caminhos já trilhara e como vira o mundo mudar, ele que contemplara maravilhas e misérias de toda a ordem! Apesar de tudo isso, continuava o mesmo, confiante e combativo, animado por projectos de escrita que poucos, mesmo muito mais novos, teriam a coragem de sequer sonhar empreender. Como já quase nada via, dependia de pessoa para os seus trabalhos e o seu pagamento era para ele uma preocupação muito embora alguns alunos dedicadamente escrevessem o que ele lhes ditava, tendo Teófilo referido ao ilustre escritor e visitante que muita pena tinha de não poder ver porque assim o estilo da escrita saía muito menos burilado.
   Foi um escritor incansável e, nos tempos de boa saúde, escrevia mais de 10 horas seguidas com a sua haste de roseira colhida no seu pequeno jardim, aparada com um canivete, amarrada com cordel e transformada em pena de escrita! Quantos escritos valiosos não saíram deste modo da sua mente para o papel!

     Se os delatores e críticos severos o castigam, denegrindo a sua obra, não podemos deixar de constatar com verdade que Teófilo foi o pioneiro da recolha e investigação das tradições e costumes portugueses, numa linha evolutiva da infância e maturidade do espírito humano que considerava estar impresso nos escritos de cada época. Haveria assim uma filogénese e uma ontogénese das origens e desenvolvimento das ideias. Com todo este trabalho lançava os alicerces para toda e qualquer História da Literatura que veio depois a escrever-se em Portugal.

   Por certo que foi apressado, contraditório e nem sempre segura a sua pena mas, como pioneiro, não temos igual no nosso país e pela sua pertinácia levou a cabo a obra mais volumosa em prosa literária, histórica, etnográfica e política que tivemos nessa época.

    A vida de Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1843-1924) foi ao mesmo tempo grandiosa, polémica, de uma tenacidade extraordinária onde se misturam a glória e a miséria, ódios e admiração de modo pouco comum. Nada é realmente vulgar na vida deste homem estranhamente odiado, admirado e esquecido, enaltecido e invejado. Só se poderá entender aceitando que tinha múltiplas facetas e que a luta pela sobrevivência o tornou amargo, dolorosamente triste e desiludido, mas sem nunca alterar a vontade férrea e o gosto pelo trabalho, pela investigação e pela escrita.

      Nasceu na cidade de Ponta Delgada, na freguesia de S. José e a sua vida começou bem cedo a ser tormentosa e infeliz. Sua mãe, chamava-se D Maria José da Câmara Albuquerque, era natural da Ilha de Santa Maria e descendente de nobres famílias. Teófilo seria décimo terceiro neto de Diogo Gonçalves Travassos, aio de D. Pedro e de Violante Velho Cabral, irmã do Comendador de Almourol, Frei Gonçalo Velho, o povoador dos Açores que chegou primeiro a Santa Maria e ao que parece era ainda descendente de Cristovão Falcão, o poeta e do Conde de Avranches. Sua mãe teve 7 filhos, o mais novo dos quais foi Teófilo Braga, tendo morrido de tenra idade 3 dos seus irmãos. Faleceu muito nova, aos 31 anos, quando ele tinha apenas 3 anos. O seu pai, Joaquim Manuel Fernandes Braga, era natural da cidade de Braga e, segundo consta, descendente de um dos meninos de Palhavã, filhos de D. João V[ii]. Foi tenente de artilharia e comandante no lugar de Os Mosteiros, pela causa legitimista. Só se rendeu após saber da «Convenção de Évora Monte» e ficou sem meios de sobrevivência, tendo por isso de abrir uma escola para leccionar náutica e matemática em Ponta Delgada, e só tempos depois foi nomeado professor régio e mais tarde ainda conseguiu um lugar de professor no Liceu. 
  O seu segundo casamento, cerca de dois anos após a morte da primeira esposa, só trouxe arrelia e desgostos aos seus quatro filhos, Luís, João, Maria José e Teófilo. O tenente miguelista teve ainda mais duas filhas, Maria da Glória e Maria do Espírito Santo. A segunda esposa chamava-se D. Ricarda Joaquina Marfim Pereira de quem o pequeno Teófilo guardou as mais infelizes recordações. O próprio Teófilo, já na sua velhice, contava que chegou a levar pontapés ao tentar ser amável e amarrar as botinas da dita senhora. O seu refúgio, triste refúgio este!, era chorar junto à campa da mãe onde jurou que venceria na vida e nunca se deixaria invadir pelo desânimo. Devido às circunstâncias de falta de dinheiro ou apoio familiar, teve de ser, em grande parte, autodidacta com tudo o que isso acarreta de bom e de mau para a educação de um jovem. A biblioteca que podia consultar era a Biblioteca Pública de Ponta Delgada e provavelmente a do Visconde da Praia, pois seu pai era professor das filhas desse senhor e este foi seu protector nas letras logo bem cedo. Por isso, e porque algum benefício pecuniário lhe podia trazer, Teófilo, mais tarde, irá convidá-lo para seu padrinho quando se propôs para a cadeira de Literatura Moderna onde depois se manteve quarenta anos a leccionar.

    Amadeu Carvalho Homem interroga-se sobre as primeiras influências espirituais e intelectuais do jovem Teófilo
[iii] e podemos ver que foram muitas e variadas. É curioso notar como, até mesmo a música sacra, deve tê-lo marcado já que o compositor, Padre Joaquim Serrão, tinha chegado de Setúbal (1840) à cidade de Ponta Delgada e deslumbrara os micaelenses com a sua música esplendorosa e barroca que tinha tanto de cénica como de grandiosa ao ponto de depois deixar de ser tocada nas igrejas. As suas Matinas a Nossa Senhora da Conceição, entre outras composições, ficaram célebres e, por muito tempo foi recordado o compositor que conquistou a Ilha e espalhou o gosto pela música sacra e a sua divulgação. Como é natural, enquanto criança, Teófilo deve ter escutado essa música e não esqueceria a sua harmonia, e, muitas vezes, em cartas familiares se refere à música como um bálsamo e um meio de «suavizar a alma».
    Foi como artista que bem precocemente mostrou o seu talento poético cujo ritmo tem sempre algo de musical. É claro que teria de ser dentro dos moldes do romantismo de então, romantismo cujo pendor nunca perdeu e o salvou, em parte, de um positivismo exacerbado.

    A confiança que tinha no seu talento mostrou-se bem cedo. Perante o professor do Liceu, João Hermeto Coelho Amarante, (1820- 1893) que lhe perguntava o que queria ser, respondeu prontamente:

    - Doutor!

    Ao que o mestre retorquiu com ironia e sem o levar a sério:

    - Não vejo moita onde saia coelho!

    Mas o pequeno Teófilo, sem perder a compostura e muito seguro de si, como aliás seria toda a vida, respondeu:

   - É porque o senhor mestre não tem faro![iv].

   O mestre não deve ter gostado da resposta, aliás era uma pessoa singular. Natural da Ilha Graciosa, foi poeta, de temperamento muito instável e acabou por se lançar ao mar numa viagem de regresso à sua Ilha.
     Teófilo foi tipógrafo aos 14 anos, ao mesmo tempo que frequentava o Liceu e bem cedo manifestou talento. O jornalista e farmacêutico, Francisco Maria Supico, (1830-1911) natural da Lousã, desempenhou um papel importante na sua juventude. Tinha este jornalista um grande pendor para as Letras, sendo director do jornal “Estrela do Oriente”, na Vila da Ribeira Grande, e depois de outros periódicos. Quando chegou, encontrou na cidade um novo ambiente cultural que a presença de António Feliciano de Castilho durante dois anos em Ponta Delgada proporcionara. Deixou muita produção sua espalhada por jornais, ao mesmo tempo que convivia e se carteava com os mais diversos literatos da época, tornando-se um açoriano por adopção. Foi através dele que Teófilo pôde publicar os seus primeiros versos no jornal que Supico editava. Depois, quando em 1920, Teófilo Braga escreve a maior parte o livro “A Mocidade de Teófilo – Subsídios bio bibliográficos para o estudo da obra de Teófilo Braga” atribuiu a mesma a Supico pelos encómios e excessos laudatórios da obra que na realidade era mais da sua autoria que de qualquer outro. Mas eram verdadeiramente amigos e assim o foram pela vida inteira.

     A sua estreia nas letras aos 15 anos com um livro de poemas, alguns já antes dispersos pelos jornais e outros inéditos, intitulado “Folhas Verdes” foi editado pelo jornal “A Ilha”. Este foi um jornal que teve parte muito activa na vida cultura de S. Miguel e resistiu muitos anos até ser extinto já na década de oitenta do século XX. Tinha o livro inspiração romântica, religiosa e também dos seus primeiros amores. Teve o apoio benevolente do Visconde da Praia. Aliás, a esposa do Visconde já ajudara a irmã de Teófilo, Maria José, sua preferida, pagando-lhe os estudos num colégio inglês
[v]. Será esta sua irmã, Maria José, mais velha do que ele apenas um ano, aquele membro da família de quem devia estar mais perto e que nunca esqueceu, apesar de não mais a ter visto depois de deixar a Ilha, muito embora projectasse várias vezes trazê-la para o seu lar, mas que foi adiando, mesmo quando já estava bafejado pela sorte e tinha já saído de dificuldades financeiras.
    A própria irmã, por fim, parece mostrar que receava a saída da sua terra natal e vir para casa de um irmão e respectiva família de quem já pouco sabia além do que, pela correspondência
[vi] lhe chegava e nem essa era sempre muito regular. Tão distante assim, só podia saber vagamente as mudanças que seu irmão sofrera. A ideia de seguir um curso teológico, as preocupações com os outros irmãos, as referências a sua esposa D. Maria do Carmo, bem como uma saudade à qual queria ser imune sem o conseguir, estão presentes ao longo dos anos nas cartas de Teófilo e mostram como o quotidiano o levava a oscilar entre a esperança de um futuro estável e o seu medo e preocupação constante por encontrar recursos sólidos e abandonar a insegurança de uma vida em que os problemas económicos eram aflitivamente vividos. Mas a amizade entre irmãos era inegável e D. Maria José preocupa-se com ele, sente as suas alegrias e desgostos como seus, censura-lhe a demora da resposta às suas cartas, conta as suas preocupações familiares.
        Esta senhora teve uma vida bem pouco feliz ou afortunada. Internada bem cedo num colégio inglês de Ponta Delgada, mais tarde, aos 18 anos, a sua estada em casa do pai e da madrasta, D. Ricarda, revelou-se tão difícil, para não dizer insustentável que o pai a aconselhou a entrar para o Convento da Esperança onde viviam as freiras das ordens já extintas, bem como algumas senhoras recolhidas Com muita sensibilidade, Brandão da Luz
[vii], deu conta de quanto deve ter sofrido esta jovem, de grande beleza e alguma cultura, em aceitar o convento como último recurso já que todas as portas se lhe fechavam. A pobre menina não ficou para sempre como recolhida no convento, onde aliás fez boas amizades e nunca se queixou de lá ter estado. Depois que saiu da casa de seu pai, este manteve-se muito distante e poucas vezes procurou ver a filha. D. Maria José viveu ainda bastante tempo em Ponta Delgada e alguns anos em casa de uma sua meia-irmã, Maria do Espírito Santo, que já viúva fora viver para a Madeira. As cartas entre os dois irmãos começaram mesmo antes de Teófilo abandonar Ponta Delgada, quando a jovem estava recolhida no Convento e as visitas à grade só se podiam realizar aos Sábados. Essa troca epistolar é mais reveladora que muitos outros testemunhos e demonstra o afecto que Teófilo tinha pela família e o seu empenho em ajudar os irmãos, mesmo o seu irmão Luís que lhe deu muitas preocupações pelo seu carácter instável. Mesmo que as circunstâncias da vida os tivesse separado, logo que isso se proporcionasse, demonstrava interesse por todos e era a sua irmã a quem dirigia as suas confidências sobre o seu estado de incerteza, as crises morais que atravessava, os contratempos e viagens que fazia. Andava sempre muito a pé e chegou a contar que, foi uma vez à Serra do Bussaco a pé e também à Figueira por saudades de ver o mar e porque considerava «pestilentos» os ares de Coimbra. Foi ainda visitar umas velhas tias a Braga, e sobre o assunto comenta:


 «É uma cidade bonita, há muita superstição, muito fanatismo e até malvadez. Fui ao Bom Jesus e vi o que se pode ver. Minhas tias são umas pobres velhinhas, fui e voltei a pé. Eu ando muito, parti de Braga às 7 da manhã e cheguei ao Porto às 4 da tarde do mesmo dia, percorrendo 8 léguas. Foi andar bem».

     Lamenta Manuel Barbosa[viii] quanto lhe foi custoso conseguir encontrar quer em livrarias, quer em alfarrabistas de Lisboa e Coimbra por onde andou, obras de Teófilo Braga, ou mesmo que versassem os seus trabalhos. Uma razão importante é que estão desactualizadas e, na verdade, sendo monumentais como são, assustariam qualquer possível editor, quer pela profusão de assuntos, quer pelos volumes que seriam precisos publicar. Apesar disso, não podemos deixar de nos espantar que esteja tão esquecido das novas gerações. Porém já na sua época era muito polémico todo o seu trabalho. Mesmo quando se tratava de estudos mais recentes, eram escassas as referências e as poucas encontradas, mais depreciativas do que criteriosas nos seus juízos. Podemos concordar com os críticos que afirmam ter havido sempre como que uma «conspiração do silêncio» ao redor desta figura tão marcante e decisiva nos finais do século XIX e princípios do século XX.
    Este homem de tenacidade indomável teve os mais elevados êxitos que bem reconhecidos foram no estrangeiro, talvez bem mais do que na sua terra natal.

     A professora Conceição Vilhena, em obra de investigação, reuniu um riquíssimo testemunho epistolar em que podemos dar conta de ilustres estrangeiros que se correspondiam com Teófilo Braga e que é um conjunto invejável para qualquer dos literatos da «Geração de Setenta» da qual fez parte activa. É uma faceta bem contrastante com uma outra, a das cartas familiares em que a forma e o conteúdo revelam como Teófilo tinha múltiplas e complexas facetas, guardando as reflexões que melhor desvendam a sua rica personalidade apenas para os íntimos. Referindo-se às cartas que se poderiam chamar oficiais e de circunstância, é assim que a Professora Conceição Vilhena nos diz:
 

   «É lendo essas cartas que nos damos conta do apreço em que era tida a palavra de Teófilo Braga, do peso que tinha o seu parecer na opinião internacional. Para todas as questões que então agitavam a Europa e eram tratadas, em especial em França, lhe era pedido o seu apoio e a sua adesão. (...) Para Byorkman, Teófilo Braga é um dos espíritos mais fortes e um dos sábios mais perspicazes do seu tempo; e a sua obra uma “enciclopédia patriótica”. Nordeau reclama, até, para o escritor português o prémio Nobel, cuja não atribuição se deve à miopia do júri de Estocolmo»[ix].  

       Se é certo que os estrangeiros não podiam avaliar bem a justeza do seu saber enciclopédico no que tinha de repentista e impulsivo, não há dúvida que muito talento, inteligência a par de uma paciente investigação, ao lado de uma inspiração poética semelhante a uma torrente caudalosa, foram dons que ninguém pode negar ao autor de “A Visão dos Tempos” um assombro e um prodígio em poesia que só uma grande inspiração e vasto saber podiam produzir.
    Quando pela primeira vez, e levados pela curiosidade, quisemos ler esta obra, foi enorme a nossa admiração! Ao mesmo tempo um sentimento de injustiça e de esquecimento imerecido faziam pensar que este era realmente um poeta que merecia maior expansão. No seu tempo, o livro “Visão dos Tempos” foi editado duas vezes em dois anos (1864-1865) o que revela como o autor surpreendeu espantosamente e de modo positivo o público da época. Logo em seguida escreveu também “Tempestades Sonoras”, com uma dedicatória muito sentida a sua irmã Maria José, e “A Ondina do Lago” (1866), poesias hoje de todo esquecidas infelizmente. Mas marcaram uma viragem na poesia da sua época e estão, em parte relevante, na causa da divergência entre Coimbra e Lisboa, ou seja, entre a nova poesia que se anunciava e o protesto do mentor das Letras na altura, representado por Castilho.

   Na obra “Antologia Poética dos Açores” escrita por Rui Galvão de Carvalho
[x], as referências são por demais elogiosas para alguém ter dúvidas do valor do seu estro. Para se tornar mais isento apoia-se em múltiplos testemunhos que melhor avaliam a obra poética de Teófilo. Assim temos a opinião do crítico espanhol, Carlo Artur Torres, que diz:  

     «Notando a influência de Comte, Hegel e Vico em Teófilo Braga ( ...) um espírito assim conformado e assim fecundo, ao erguer voo para os horizontes da Poesia, tinha de produzir uma obra imponente, O grande Poema Épico da moderna mentalidade (...) é a epopeia da emancipação moral do género humano».     

     Manuel Barbosa, na sua obra já referida, embora saliente o valor da sua poesia, não colocou nenhum poema a ilustrar a mesma, em contraste com a antologia que apresenta do poeta do Nordeste de S. Miguel, Virgílio de Oliveira. A injustiça, mesmo para um admirador, é notória. Repete-se um erro que é já hábito quando se evoca este pensador, como se, face à monumental obra em prosa, se tivesse de esquecer o poeta que, se o não continuou a ser na maturidade, será pelos revezes da vida que melhor explicam muito da sua mudança de estilo e de espírito para assuntos mais prosaicos mas mais ligados à sua necessidade de sobrevivência e da sua família.
    O jovem Joaquim Teófilo Braga teve a coragem de se abalançar aos 18 anos para a cidade de Coimbra. Antes pensara em emigrar para a América do Norte para exercer a profissão de tipógrafo como meio de se sustentar, mas foi dissuadido pelos amigos e pelo pai. Mas a sua ambição incitava-o a partir e o apoio de Francisco Maria Supico obstou a que viajasse dos Açores até Lisboa no convés do navio durante os 5 dias e meio que duraram a viagem paga a custo pelo pai, que lhe prometia também uma magra mesada em Coimbra.

    A saída para nunca mais regressar à sua Ilha natal, São Miguel, não foi promessa que fez a seu pai como diz Amadeu Carvalho Homem
[xi], pois o próprio Teófilo confessa em carta a sua irmã, só em 1864, que nunca mais quer voltar, antes preferiria que a irmã viesse para a sua companhia e acrescenta: «Eu nunca o disse a meu Pai, mas não vou para a Ilha de S. Miguel»; por um lado, se regressasse à Ilha, teria de se integrar logo na recruta militar e, por outro lado ainda, não faltou o rumor de que teria tido um filho cuja paternidade não quis assumir e de que fala com estranha dureza para um tão jovem rapaz. A isso se lhe referiria Supico, (1861) mas a resposta foi a de um desinteresse absoluto pelo filho de que nunca mais ninguém falou[xii].
     É curioso como o seu primeiro alojamento em Coimbra foi em casa de Filipe de Quental, (1824-1892) lente de Medicina e tio paterno de Antero de Quental. Era Filipe de Quental um espírito muito original, conhecido no meio coimbrão pela sua extravagância e boémia. É provável que a reserva de Teófilo se chocasse tanto com o tio como com o sobrinho. Mas também podia ter acesso a uma formidável biblioteca de que era possuidor o mesmo lente. Portanto, tanto ele como Antero beneficiaram, cada um seu modo, da benevolência deste açoriano ilustre.

    A sorte nas novas paragens a que chegara não foi nada favorável. E o certo é que não conseguiu a admissão à Faculdade de Direito por ter reprovado em latinidade. O mesmo já tinha sucedido a Antero. Era um ano perdido e teria ainda que esperar para a sua tão desejada entrada na Faculdade. Foi um grande revés, tanto mais que dependia dos parcos meios do pai para a sua sobrevivência, tendo grandes preocupações por causa disso. Caiu então em forte solidão e pessimismo face à sociedade, mas não face ao seu talento e ambição pessoal que mantém sempre mesmo nos piores momentos. Nesta altura fala em desespero, por não poder ter meios de superar tantas dificuldades económicas e as cartas da irmã são um lenitivo que ele compara à leitura da “Imitação de Cristo” e a sua fé religiosa não parece ainda abalada
[xiii]. Em 1863, já frequentando o curso de Direito, pela Páscoa, foi às Endoenças no convento das Urselinas em Coimbra, ouve cantar as Matinas de Quinta e Sexta feira Santa e fala a sua irmã de saudades, mas umas saudades que projecta no futuro:

 «… as saudades que elas me despertaram, mas umas saudades não do passado, que se me apresenta triste, perseguido, com a desesperança que sofri nesse tempo, mas uma saudade do futuro? Sabes o que é ter saudades do futuro? É quando nos sentimos em nós força bastante para afrontar as privações da miséria e triunfarmos da injustiça, mas que o futuro somente pode compensar o arrojo»[xiv].

   A sua religiosidade vai lentamente, mas sem dramas, tomando uma forma desprendida de dogmas e assente mais na ideia do Bem em que desaparece o catolicismo tradicional da sua educação para dar lugar a uma Metafísica com tendências panteístas, sem que seja propriamente agnóstico mas antes fundamentando-se numa teleologia de raiz hegeliana em que Deus se realiza na História a partir da Ideia, manifestada nas múltiplas formas da liberdade que se realiza evolutivamente. 
   Não se mostra nada deslumbrado com a nova cidade e vê tudo com um olhar desencantado, sem entusiasmo e com aquela saudade do mar e do viver ilhéu muito mais forte e sentida do que depois gostava de mostrar.

    Era muito cuidadoso com motins e desacatos dos estudantes e, aquando do episódio da evacuação da sala dos Capelos pelos estudantes, por causa do Reitor Basílio Sousa Pinto, muito embora concordasse com eles, manteve-se prudentemente afastado para «não ser riscado» o que poria em causa a sua formatura.

    Nessa época, até as festividades religiosas na sua cidade natal, no Convento em que estava a jovem Maria José, eram evocadas com emoção e saudade. Aliás, através da sua correspondência, quer com a irmã, quer com a noiva que se tornará depois sua esposa, mostra como nunca gostou de Coimbra e sempre se lamenta quando lá tem de permanecer, adverso aos seus ares, queixando-se de múltiplas maleitas, sem interesse pela estúrdia juvenil e indisposto com os quartos incómodos que habitava contrafeito, ansioso depois por um regresso ao lar, junto da esposa e depois dos filhos, enaltecendo sempre a paz de sua casa e a felicidade que gozava junto da família, em termos de grande sensibilidade que mantém ao longo dos anos. Tinha de se ausentar muito, por causa dos exames e dos rendimentos que daí auferia. Ora ia a Santarém, ora a Viana do Castelo, ora ao Porto e a outros lugares, mas tem sempre presente o cuidado com os seus, a sua saúde e os pormenores que fazem o bem-estar do quotidiano familiar.

    Teve uma grande alegria nas férias do Natal de 1864, quando foi a Lisboa para apresentar a sua peça “Repto a Gil Vicente” ao Director do Teatro D. Maria II e onde foi muito bem recebido entre os literatos, como António Feliciano de Castilho, Mendes Leal, Bulhão Pato e outros, conforme escreveu a Supico. À irmã refere mesmo como o entusiasmaram as palmas pela recitação da sua poesia “Stella Matutina” no Teatro S. João no Porto e que lhe deixaram uma impressão contraditória de satisfação contida e de confiança na sua «vontade de ferro».

    Entretanto e paralelamente, Antero de Quental, que chegara mais novo e mais cedo a Coimbra, traçava um rumo nas Letras que se iria cruzar com Teófilo Braga. Trazia muitas vantagens de filho-família e da protecção influente do padrinho e tio, o lente Filipe de Quental, em casa de quem podia ficar. Apesar disso, preferia deambular pela casa dos colegas e para ele alunos como Teófilo eram os “ursos” que agradavam aos mestres e não participavam na vida académica e na boémia estudantil. Todavia conheciam-se, quase se diria que eram amigos, já que eram colegas, habitaram sob o mesmo tecto e para mais eram conterrâneos.

   Teófilo Braga esteve envolvido na Questão Coimbrã, escrevendo o artigo “Teocracias Literárias” e manteve-se ao lado de Antero, sendo dito por Teófilo, mais tarde, que tudo começara por sua causa. Todavia tal facto é duvidoso, e o mais correcto será dizer que cada um teve a sua parte na luta pela polémica questão literária que levantaram contra o mestre, mentor das Letras em Portugal que não estava preparado para aquela nova poesia e menos ainda para novas ideias.

     Castilho pontificava na literatura portuguesa de então. Mesmo que não pudesse estar a par das grandes mudanças do pensamento europeu da época e que se infiltravam cada vez mais no país, a sua obra, as suas traduções excelentes e o seu prestígio tinham aumentado muito. Uma das suas mais estranhas hostilidades foi contra o grande Vate, Camões, de quem ele começou desdenhar e a tecer considerações estranhamente depreciativas, considerando-o ultrapassado e decadente. Enaltecia então um tal Tomás Ribeiro, autor de “D. Jaime” poeta das suas preferências. Apesar do despropósito, não era criticado por isso e o certo é que a palavra de Castilho tornara-se importantíssima para qualquer escritor que se lançasse nas Letras e, quando o seu apoio era dado, passava a ser considerado aval definitivo para o futuro de um escritor.

     Antero tinha também já escrito “Primaveras Românticas” (1865) e depois “Odes Modernas” em que se afastava definitivamente da sua própria poesia da mocidade, agora sob a influência de Victor Hugo, Michelet e tantos outros. Fora mesmo a Lisboa tentar encontrar um editor, e ler a Herculano que sempre admirou, bem como a Castilho, as suas poesias, conforme depoimento do seu amigo Alberto Sampaio que admite o facto de Antero ter ido a casa de ambos os escritores e que Castilho deve ter ficado horrorizado com os versos «duros e ásperos cheios de incorrecções, e o assunto extra poético que tratavam»
[xv]. Acrescenta ainda o amigo que Castilho e os seus amigos, depois da saída de Antero, devem ter ironizado e criticado ferozmente tais poemas!
   Antero, que procurara o apoio do mestre, lhe lera os poemas como tantos outros o faziam, não estava numa situação tão livre e desobrigada como Teófilo que não procurara nem sequer sondara a opinião do conceituado mestre. O orgulho de Antero saía mais ferido, pois tinha ido ter com Castilho tentando agradar-lhe e suscitara, pelo contrário, forte contestação.

   Castilho ironizara em artigo de jornal a poesia de Teófilo, com tais encómios que revelavam a sua profunda hostilidade e diz:
 

    «Vejo que há um génio divino que pretende manifestar-se e um profeta coroado de luz e incumbido de trazer às turbas as tábuas da lei nova; mentiria, porém, para dissimular a confissão da minha ignorância e pouquidade, se tivesse o arrojo de dizer que abranjo e compreendo já toda a sua doutrina, e a sigo em todos os seus assomos.
     Cantor exclusivamente de amenidades mui terrestres e chãs e não me elevando quando muito senão às realidades palpáveis do ensino do povo, como caminho para melhores e mais agradáveis tempos neste mundo, nunca me sobraram ócios nem cobiça, nem sequer, segundo julgo, capacidade para me engolfar nos oceanos sem fundo das filosofias transcendentais, por onde vejo que o espírito de V. corre a panos largos para mundos desconhecidos, e de que eu nem bem suspeito a existência»
[xvi].  

    Assim prossegue a sua carta aberta ao público e bem se nota como era ofensiva, vinda de quem era tão bem considerado pelos literatos e seus aduladores que eram tantos.
    Por tudo isso, ambos entram na “ Questão Coimbrã” que atiça como um rastilho de pólvora e tanto clamor causou nas letras em Portugal.          Camilo toma a defesa de Castilho, mas esmoreceu depois o ânimo por não conseguir o almejado emprego público mais ou menos prometido. O pretexto foi uma doença de Ana Plácido que, em carta, diz estar quase moribunda mas não passava de um engenhoso meio de se libertar de compromissos com Castilho que desejava apoios na contenda de que saiu muito magoado.

    Gomes Monteiro cita uma carta do poeta de “Visão dos Tempos” a seu amigo, Francisco Maria Supico em que narra o início destes acontecimentos, a partir do momento em que leu o livro de Pinheiro Chagas, “Poema da Mocidade”, com uma carta tipo prefácio escrita por Castilho e dirigida ao conhecidíssimo editor da época António Maria Pereira. O conceituado escritor cego dava a conhecer a sua predilecção por este poeta, preconizando dogmaticamente era ele quem devia ocupar a cadeira de Literatura Moderna.

      Teófilo Braga fala de Castilho e como este justifica a sua escolha e beneplácito:
 

   «…e daí exercer uma acção benéfica na crítica moderna, salvando a Literatura Portuguesa do contacto com o estilo coimbrão. Para caracterizar este estilo, Castilho servia-se dos nomes de Vieira de Castro, Antero de Quental, crucificando-me entre eles, pondo-me em foco. Nas suas palavras que se reduzem as três linhas, há apenas umas insidiosas ironias, e nada têm que provoque uma réplica fulminante. Mas fiquei compreendendo donde soprava o vento. Quando menos esperava apareceu-me à porta da livraria, Antero...»[xvii]  

     A resposta de Antero “Bom senso e Bom gosto” iniciou a polémica que incendiou o Portugal das Letras de então. Mas o poeta-filósofo, descontente com o assunto, afastou-se da luta. Apenas acrescentou um episódio romanesco do duelo que travou no Porto, com Ramalho Ortigão de quem, todavia, se tornou de novo amigo e companheiro no “Cenáculo”, mais tarde, em Lisboa.
    Na época, Ramalho que iria tomar parte activa na contenda como paladino do poeta de “Os ciúmes do Bardo”, descreve assim o que então se passava:
 

    «Estão-se dilacerando rancorosamente em Portugal duas seitas literárias a que chamam a Coimbrã e a Ulissiponense. Dizem de Lisboa que não percebem o palavroso e abstruso mistifório dos literatos de Coimbra. Gritam os de Coimbra que se lhe não dá com o paladar o palavrório delambido dos literatos de Lisboa.
    De modo que, aí temos o Mondego engalfinhado no Tejo»
[xviii].

     Como nos seus primeiros tempos de Coimbra Teófilo Braga para se manter e como ajuda à parca mesada paterna, tinha de escrever e trabalhar muito, dependia de alguma boa vontade dos editores de jornais. Para além da colaboração na imprensa na “Revista de Coimbra” e no “Instituto”, escrevia poesias, dava explicações, copiava sebentas para os colegas com mais poder económico e que assim podiam ter as disciplinas em dia.
   Para Teófilo as coisas correram bastante mal, pois Castilho ofendido procurou vingar-se e conseguiu que a direcção do “Jornal do Comércio” deixasse de publicar artigos seus e assim perdia uma das poucas fontes de rendimento que tinha. Diz o próprio Teófilo:

     «De repente achei-me cercado de ódios; cortaram-me os víveres na empresa do jornal, nas aulas de Direito tiram-me a mesquinha distinção académica, os críticos espalmaram-me rudemente, os livreiros recusaram-me dar publicidade ao que escrevia, e os patriarcas das letras com o peso da sua autoridade sorriam com equívocos sobre o meu valor intelectual, chegando a circularem lendas depressivas sobre o meu carácter e costumes que só consegui desfazer com uma vida às claras e cheia de ignorados sacrifícios. Outro qualquer ter-se-ia rendido. Vi-me forçado a invertes as bases da minha existência, abandonando a Arte que me seduzia, porque me abandonara a serenidade contemplativa, e lancei-me à crítica, à erudição, à ciência, à filosofia. Neste campo os meus erro e exageros bem merecem ser perdoados…» [xix].

        Entretanto, já em 1868, Teófilo Braga tinha casado, aos 26 anos, com D. Maria do Carmo Barros Leite, senhora sem grandes meios de fortuna e ele próprio não tinha ainda aquela segurança financeira que foi sempre nele uma enorme preocupação. As suas cartas à noiva, nos anos que precederam o enlace, mostram como procurava, com toda a sua tenacidade, um lugar na sociedade mas não através de uma intervenção activa antes porém pela perseverança nas investigações e nos trabalhos de gabinete e de estudo; ele próprio compara os tipos de pessoas como Marta e Maria diante de Jesus. É à figura de Maria e não de Marta com que ele diz parecer-se:  

  «Uns servem, outros contemplam, -escreve – de facto eu sinto-me com uma grande disposição para pensar. E se há coisa que demande uma quietude mais sossegada e silenciosa, é o pensamento».

     Pode depreender-se daqui que a acção dos seus inimigos o lançou numa senda em que já nada tinha de combativo na arena, mas a sua pena tornava-se o seu instrumento de luta e de intenso labor. E, não foi mais longe ainda porque a época lhe era adversa e a ideologia que professava lhe tolhia uma visão mais cuidada nos seus escritos que foram, nem mais nem menos do que 360 obras, algo único e nunca mais realizado em Portugal!  
   A sua vida familiar iria decorrer num ambiente em que se vislumbrava sempre uma grande riqueza de sentimentos, com muita ternura e afectividade que não manifestava facilmente fora de portas.
      Vivendo em casa de sua sogra e tendo-lhe morrido o pai no ano de 1870, a sua vida estava longe da tranquilidade tão desejada. D. Maria José menciona a sua preocupação com a saúde dele, sempre problemática, ao mesmo tempo que lhe descreve a morte quase súbita do pai quando ainda dava aulas no Liceu de Ponta Delgada. No ano seguinte, após ter perdido mais um concurso de uma colocação como lente na Faculdade de Direito em Coimbra, nasceu-lhe a sua filha Maria da Graça à qual se refere sempre com grande carinho.

    As suas tentativas de encontrar um lugar na Universidade iam falhando várias vezes. Depois de doutorado em 1868, tinha sido injusta e escandalosamente afastado de concurso apenas por razões políticas. Não conseguiu lugar como secretário da Biblioteca da Universidade, dizia ele que por culpa da má vontade de Antero, depois perdeu possibilidades de colocação como professor, devido à extinção dos lugares e, outras vezes, por ser mal sucedido em outros concursos, provavelmente com injustiça que o marcou e tornou mais desconfiado e amargo. Tudo isso contribuiu para o tornar ainda mais pessimista e a sua saúde era bastante débil, face às tarefas que se impunha. Trabalhava tanto e com tanta velocidade que, entre 1869 e 1872, conseguiu publicar onze volumes da História da Literatura Portuguesa, contra todas a adversidades e silêncios injustos que, como numa barreira, procuravam abafar e calar o jovem açoriano. A sua intervenção na Questão Coimbrã arrastou-lhe inimizades e muitas delas com efeitos de afastamento do seu trabalho na imprensa e mais dificuldades para angariar o seu ganha-pão, numa época crítica da sua vida.

    As influências de Schlegel e de Taine e dos irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, não deixam de ser fortes tanto por terem sido favoráveis para começar o estudo das línguas românicas, como por despertarem os interesses filológicos pelas canções de gesta medievais. Mas também se terá de ver a influência de Vico e de Michelet na busca das raízes do espírito dos povos e suas nacionalidades.
    O sistema de Hegel será uma presença subtil que não se pode desmentir na elaboração das suas ideias filosóficas, apesar de, em certas ocasiões, ser apressado ou confuso como tantas vezes foi criticado. Na relação entre a história e a filosofia, na visão teleológica de um progresso das manifestações do Espírito, estão muitas influências hegelianas. Uma consulta, mesmo superficial a muitas das suas obras, leva-nos logo a tal conclusão.

  O certo é que vendo, como faz Palma Ferreira, a evolução das criticas que ao longo dos tempos lhe foram feitas, acabamos por verificar que, com tão extensa obra e tão incipiente trabalho científico anterior, as suas falhas ou tendências que se multiplicavam, puderam dar azo a que os opositores e admiradores, o considerassem como o fundador do nacionalismo em Portugal, na peugada de Garrett. No seu ideário estava consciente do que devia ao autor de “Frei Luís de Sousa” na continuidade do seu programa estético, agora historiado pela análise das tradições populares capazes de originarem uma história da literatura nacional, na mesma linha em que outros estudiosos europeus seguiam. Castelo Branco Chaves afirma mesmo que os nacionalistas comungaram com Teófilo no transcendente e místico salvatério da tradição, na nacionalidade como fatalidade maravilhosa, no populismo estético como supremo recurso artístico
[xx]. Depois outras correntes tomaram novos rumos, como foi o caso de António Sardinha e de todo o movimento integralista. Os nacionalistas e tradicionalistas encontraram em Teófilo um filão excelente para justificar as suas intenções. O próprio Teófilo teria escrito que:

        «A íntima relação entre a tradição nacional e a interpretação artística é o que sem abstracções metafísicas constitui o Belo»[xxi].

      Muitos serão os que invocaram o seu nome como uma herança cultural que vêem conforme a sua óptica, como sucedera já nos inícios, quer com o filósofo e historiador Oliveira Martins, quer com Antero. O próprio António Sérgio, sempre polémico, tem uma visão injusta e simplista da obra. Como muito bem diz Mário Soares, citado por Palma Ferreira a arrematar a evolução das críticas a Teófilo:  

    «Apesar das suas contradições, Teófilo Braga não foi tão contraditório como alguns dos seus opositores da juventude».

     Tais palavras adaptam-se a qualquer crítica que se verificou ao longo do século XX e nunca alcançam tomar um tom mais científico e isento.          A partir de 1872, ano em que finalmente consegue um lugar para leccionar Literatura Moderna no Curso Superior de Letras em Lisboa, a sua vida pode dizer-se que toma um rumo mais organizado. A sua tese tinha sido “Teoria da História da Literatura Portuguesa”. Teve fortes adversários concorrentes e um deles era Pinheiro Chagas, que era dos preferidos, muito embora o seu trabalho fosse muito deficiente face ao de Teófilo Braga, o outro era Luciano Cordeiro. Entre os defensores de Pinheiro Chagas estava outra vez Antero que criticava fortemente a tese de Teófilo, acusando-a de simplismo com um patriotismo nacionalista defensor da latinidade das origens da literatura. Porém não se afastava do hegelianismo em que o espírito da Reforma é a concretização da ideia da liberdade e a sua actividade visava uma concretização das aspirações de transformação social e política com a entrada final da consciência dos povos no estado positivo e científico capaz de uma transformação evolutiva das instituições políticas e sociais que os ideais republicanos realizariam. Sem isso, a sociedade mergulharia num caos que ele vislumbrava com a monarquia e a religião. Não sendo contra a liberdade religiosa, não deixou de ser adversário da Igreja e manifestou empenho em afastar a família de qualquer culto que não fosse a razão e os costumes morais.
     Apesar de todas as lutas surdas e intestinas dos bastidores, em que o próprio Teófilo se envolvia e até, nas cartas a sua mulher, lhe pede que mova alguma influência no caso, não sucedeu a aceitação da tese de Pinheiro Chagas, nem do outro candidato, como os seus inimigos esperavam. Teófilo Braga, no final do seu trabalho, foi aclamado pelo público e o Júri cedeu à voz popular. Nesse mesmo ano é aceite como sócio correspondente da Real Academia de História em Madrid e disso dá notícia à esposa, mas sem mostras de grande júbilo, apenas compara o que se passava à sua volta com o que dele pensavam fora do seu próprio país.

     Teófilo luta sempre e consegue triunfos que ninguém esperaria dele. Como político não se furta a entrar na luta.

    Muito embora tivessem esfriado por completo as relações de Teófilo com Antero, este, na preparação das Conferências Democráticas do Casino, quando vivia em Lisboa e voltara a uma vida de boémia intelectual rodeado dos seus fies amigos, não deixou de se lembrar do autor de “A Ondina do Lago” e das “Tempestades Sonoras” e escreveu-lhe uma carta em que lhe pede colaboração e nos melhores termos de uma amizade que não condizia com o passado ainda bem recente. Diz pois:

      «Temos resolvido, eu e alguns rapazes, novos e independentes (dos quais o Teófilo conhece, por exemplo: Eça de Queirós, Adolfo Coelho, Manuel Arriaga, Oliveira Martins, José Falcão, Batalha Reis, respondendo eu pela seriedade dos outros, que não conhece) abrir em Lisboa uma Sala de “Conferências livres” livres em todo o sentido da palavra, não frequentada por convidados da literatura, mas aberta a toda a gente, e de todas as condições, aonde se tratem as grandes questões contemporâneas, religiosas, políticas, sociais literárias e científicas, num espírito de franqueza, coragem, positivismo, numa palavra com radicalismo. (…).

    O nosso fim é produzir uma agitação intelectual na nossa sociedade lançando em cada semana uma ideia ou duas para o meio desta massa adormecida do público.
    Serve-lhe isto? E podemos contar com o Teófilo? Podemos – já – contar com o seu nome ao lado dos nossos; e – de futuro, quando puder ou quiser – com a sua voz entre as nossas? Afirmo-lhe que vai em companhia séria e que não o envergonha. O meu nome pode dar-lhe, pelo menos, uma garantia de seriedade. Eu dou grande importância a esta tentativa, não só esperando bons resultados directos, como, indirectamente, outros talvez maiores, por exemplo, o gosto das Conferências desenvolvendo-se fora de Lisboa, abrindo-se salas em Coimbra e Porto, etc. A minha imaginação galopa, nessa região agitadora, ardente e animada. As dificuldades materiais estão resolvidas: temos uma boa casa: falta-nos só a adesão de alguns amigos, com quem contamos, para fazer o nosso anúncio ou programa, feito o que começaremos.

  Peço-lhe que me responda breve. Se não tiver tempo, diga só Sim ou Não:

Mas sem muita demora (…).

   Adeus. Seu sempre do coração. Antero » [xxii].

 

     Se isto se passava em 1871, é curioso notar como toda a carta denota deferência, senão amizade e Antero parece completamente esquecido da sua crítica e má vontade manifestadas antes e que depois renovará, contra quem agora parece ser um amigo pronto a ajudá-lo no que seria uma intervenção poderosa na vida nacional. Note-se mesmo como ele já visionava grandes revoluções e empreendimentos extraordinários devidos às «Conferências Democráticas do Casino» mesmo antes destas se terem iniciado!
   De facto, Teófilo iria colaborar nessa iniciativa, como mais tarde também deu o seu contributo para a organização da homenagem a Camões na celebração do seu tricentenário.

    Foram tais celebrações realizadas em 1880 e Ramalho Ortigão terá um papel importante nessa solenidade que tentava revigorar as forças da nação em torno do grande Épico, enaltecendo a Pátria e recordando a grandeza de Portugal, mesmo numa fase crítica e difícil como era aquela do Ultimatum Inglês.

   Teófilo tinha grande admiração pelo autor de “Os Lusíadas” e empregou muito do seu tempo e estudo a Camões, o «Homero das línguas vivas» como lhe chamou o sábio alemão Humboldt e já, em 1873, escrevera “História de Camões” em 2 volumes, em que afirmava orgulhosamente: «Os Lusíadas, epopeia da nacionalidade portuguesa». Para esta comemoração, que considerava um dever moral dos portugueses, dedicou um trabalho intitulado “Bibliografia Camoniana” (1880) e depois, já em 1891, escrevia “Camões e o sentimento nacional” em que afirma:

     «O assunto Camões e o sentimento nacional é um dos mais curiosos problemas da sociologia porque partindo do facto, como uns agregados de povoações cantonais, chegaram à unificação da Pátria, pelo amor do seu território, a necessidade de mantê-la em independência, obrigou-os a uma acção comum, a um ideal colectivo que fortifica o sentimento da Pátria e Nacionalidade»[xxiii].
 
       Para Eduardo Lourenço, o que salva Teófilo da erudição pesada e morta, é a sua veia poética que nunca morreu e que o fez notar no lirismo camoniano muitas intuições que foram retomadas pelos mais consagrados críticos como Hernâni Cidade, Jorge de Sena e tantos outros. 
    Nessa altura já Antero parodiava as celebrações e afastava-se mais uma vez da vida real e das intervenções possíveis de efectivar. Aliás, depois da sua reacção face à revolução de Espanha, do projecto da União Ibérica, Antero, numa fase de grande pessimismo, critica o seu amigo Ramalho e escreve em carta a Oliveira Martins:

       «Esquecia-me dizer-lhe que aqui a grande comissão dos literatos, depois de grave meditar, resolveu celebrar o centenário com uma procissão! Isto é curioso, até no ponto de vista biológico, porque mostra o poder do atavismo. Aos netos dos frades que lhes há-de lembrar senão procissões? A ideia, dizem, partiu do Ramalho, que a apresentou naturalmente como toda moderna e positiva. Notável caso de «regressão morfológica»! O Ramalho, cuidando adiante do século, reproduz simplesmente o avô, que era da Ordem dos Terceiros»[xxiv]

      Mas, depois de toda a veemência com que critica tais comemorações que considera um epitáfio de uma nação e o crepúsculo de um povo, assistirá com a maior comoção à passagem do cortejo cívico, conforme testemunho do amigo Joaquim de Araújo. Assegura mesmo que foi uma «maravilha» e que lhe deixou uma impressão memorável[xxv].
     Teófilo Braga, entretanto continua a sua imensa tarefa de pioneiro e de investigador das raízes do povo português, nas mais diversas formas de expressão. O fenómeno da «raça» é que daria o cariz da formação do espírito estético e a sua expressão literária diferenciando-se cada povo devido ao papel que a etnia tem na criação de uma identidade própria. Assim temos a crítica muito lúcida de Prado Coelho a parte da sua obra:

      «Simplesmente, Teófilo vinculava de modo excessivamente apressado a individualidade cultural portuguesa ao factor étnico, ao que ele chamava «o génio da raça». Era este um dos pontos frágeis da sua filosofia da História Literária. (…) pela dificuldade que subsiste em relacionar com algum rigor a Raça e a Literatura»[xxvi].

      Mas as análises críticas trazem sempre a chancela do seu tempo e das tendências das escolas, não se pode separar afinal nenhum crítico do seu próprio contexto. É preciso ter em conta como as teorias defendidas por Teófilo eram pioneiras e, tanto a apologia da etnia moçárabe, como a raça lusa, que defendeu mais tarde, procuravam uma linha de persistência da nacionalidade mesmo com todas as transformações ocorridas. O contexto era vasto e, por isso mesmo, por demais ambicioso para que pudesse alguma vez abarcar mais do que os planos gerais e as raízes em que buscava os fundamentos das investigações. Neste aspecto foi muito influenciado por Vico, na sua busca de entender os símbolos primitivos dos mitos, fábulas e outros como formas de expressão da «linguagem do sentimento que só o poeta moderno compreende».
    Teófilo ficou muito marcado pelo positivismo de Augusto Comte, segundo a versão de Littré, que tomou como modelo para a sua política e usa pragmaticamente estas ideias filosóficas.

     Temos de ter em conta a enorme aceitação nos meios intelectuais portugueses da época das ideias do positivismo e do cientismo reinantes para compreender como se iludia por pensar que o progresso científico seria uma tarefa que a política levaria a cabo. Todavia, tanto pela importância que dava à psicologia, que Comte negligenciava, como pela influência de Hegel, não podia ser um adepto total do mestre do positivismo e manteve o fundo romântico do seu pensamento.

    A sua obra, sendo tão vasta, tem de ser multifacetada e se há um ponto comum será a busca constante de descobrir e fundamentar a consciência que manteve sempre da grande força da Raça, da Tradição e da Nacionalidade como virtualidades das concepções individuais sobre os grandes factos históricos e a sua expressão artística.

    Parece que a vida lhe reservava um futuro sereno agora com a sua família constituída e as suas preocupações são simples como a sua estada em Airão, onde a esposa passara muitas vezes as férias antes de casar, e depois lá se quis estabelecer numa vivenda, afastado da vida da cidade, como ele mesmo diz «com bom ar e muita luz, independência, serenidade …» e, ao mesmo tempo criava condições para morar definitivamente em Lisboa onde já era professor. Por razões económicas vem ainda a incompatibilizar-se com a sogra e com o cunhado mostrando uma aspereza sem indulgência para com ambos. Curiosamente e ainda apenas por razões monetárias, ao que se depreende, escreve sermões de encomenda sobre a Paixão, Soledade e outros. Continuava a gostar muito de música e tinha uma predilecção especial pelo compositor Meyerbeer.

    Em Abril de 1874, nasce um seu outro filho que terá o nome do pai. A forma como trata a questão do baptismo mostra como estava arredado da religião cristã e como pensa que só é necessário para suprir a falta do registo civil. Já o mesmo se passara com a necessidade de estar no rol dos confessados para aceder às formalidades do seu doutoramento e casamento, mostrando-se muito contrariado e avesso a tudo o que respeitava a religião e seus preceitos. Via na natureza e a conformidade com ela a perfeição do homem e a selecção da espécie humana uma realização histórica. Toda a sua ternura se concentra na mulher e nos filhos, reservando a santidade para o lar e para a família.

        Entretanto, a sua vida pessoal tornara-se afectivamente estável e apenas alguns incidentes e viagens pelo país alteram a sua leccionação e a sua incansável escrita.
Comparativamente com outras, as cartas para a irmã têm mais riqueza psicológica e interesse biográfico do que, por exemplo, as para D. Maria do Carmo onde se destacam os elogios à mulher, o culto que pensa que merece, as expansões afectivas, depois as inquietações com a saúde, com a situação económica e algum dado pouco relevante sobre exames nos Liceus por onde passa, alusões a manobras de influências e buscas sempre insatisfeitas por uma casa ou quinta, onde por fim se pudesse instalar definitivamente para trabalhar e descansar tranquilamente. 
    Quanto à estabilidade económica, que era sua inquietação constante, angustiante mesmo, pela forma como se refere quase em cada carta, quase em primeiro plano das suas preocupações, a partir de 1872, Teófilo Braga que viera do Porto para Lisboa, passando a leccionar literatura no Curso Superior de Letras estava consolidada. Pensa mesmo em comprar uma quinta no campo, para que a família gozasse melhor saúde e as suas actividades são as aulas e o estudo, continuando incessantemente a obra que tornava monumental.
    Dá-se, repentinamente, no curtíssimo espaço de 14 semanas, a morte dos dois filhos, já adolescentes, primeiro o seu filho mais novo, Teófilo e depois Maria da Graça, pelos quais se pode notar bem que sempre teve um grande afecto, cuidado e muito carinho.

    A sua irmã confidenciou os sonhos e projectos que para eles criara, pensando numa educação que lhes desse felicidade e os afastasse da religião que lhes podia tolher a liberdade e especialmente a «liberdade moral».

    O poeta de “Visão dos Tempos” chegou mesmo a desenhar um retrato a carvão do seu filho, já quase adolescente, com um ar tímido, olhar firme e toda uma fragilidade infantil contrastante com o arzinho de adulto que procura ter. É um retrato que respira afecto, delicadeza, carinho.
     A sua morte foi quase repentina e de nada valeram as buscas de melhores médicos e tratamentos mais eficazes do que os que começou a ter na aldeia onde adoeceu. Foi uma imensa fatalidade!

    Com a sua filha, Maria da Graça, mais velha 4 anos do que o irmão, tendo portanto cerca de 16 anos, o golpe repetiu-se e a dor é ainda maior, se possível pudesse ser, para os pais desesperados e desoladíssimos.

    Teófilo sempre mostrara alguma inquietação com as doenças da filha, que sempre fora débil e o retrato que resta dela mostra-a ainda criança, sentada à secretária, com um ar precocemente triste e um rosto estranhamente adulto, num frágil corpo infantil. Com a desaparição destes filhos toda a sua alegria familiar se desvanece.

       É então que acontece o rompimento definitivo com Antero. Os amigos quiseram prestar-lhe homenagem e solidariedade devido à morte que assim o atingia em menos de um ano. Camilo escreveu um admirável soneto «A maior dor humana» justamente celebrado e que se tornou no título do livro que lhe escreveram. Todavia há a notar que Camilo era um inveterado inimigo de Teófilo em letras, mas não se furtou a esse preito de amizade e compreensão. Era uma ocasião em que o sofrimento apagava as divergências literárias, em que o apoio a alguém a quem o destino foi tão adverso surgia como natural e compreensivo.

   Recorrendo ao depoimento de Gomes Monteiro o ressentimento de Teófilo não provinha só disso.

   «(...) A questão vinha de mais longe: do tempo da famosa Questão Coimbrã, em que Antero abandonando Teófilo, se compusera com Castilho, e ainda por outra censurável acção praticada cinco anos antes. Ouvi Teófilo queixar-se várias vezes da inconstância de Antero que em seu entender, era fraco, deixando-se conduzir como uma criança pelo seu amigo Germano Meireles»[xxvii].

        Nessa ocasião, Antero recusou-se intempestivamente a colaborar. Podia ter escrito apenas uma nota de condolências, já que, como declarou na altura, não versejava quando desejava, mas não o fez. Demonstrou mesmo uma secura e insensibilidade pouco naturais nele que se mostrava sempre tão condoído com as dores alheias e, sabendo disso, Teófilo, amargurado, sob o peso de uma dor real tão grande, não lhe perdoou nunca tal procedimento.
     Por muitas razões, uma das quais foi o seu feitio complexo que não tornava fácil a convivência, queixou-se sempre amargamente das perseguições de que foi tantas vezes alvo e não deixou de se defender e ferir ferozmente os seus inimigos, especialmente Antero.

     João Palma-Ferreira
[xxviii], escreveu, a corroborar o sentimento de injustiça que revoltava Teófilo, como tentavam minimizar «o trabalho monumental que produziu entre 1864 a 1872, oito férteis anos em que lançou os alicerces de uma actividade quase febril na destrinça, na sistematização e na orientação futura de uma história literária». 
    Diz ainda Palma-Ferreira
[xxix] que, se bem nos nossos dias as críticas de Antero e de Oliveira Martins são justificadas, já que Teófilo na questão da origem das nacionalidades, passava «de um fenómeno puramente social» para criar um fenómeno etnológico, para a sua época a sua tese «em favor do primado nacional da poesia popular era ainda escandalosamente revolucionária». Apesar disso o que o jovem Oliveira Martins e seu amigo mais condenavam era a noção de evolução de raça em diferentes momentos representados na literatura, mas antes insistiam na Europa como o cadinho gigantesco em que Portugal romanizado, não é uma nova Roma, mas a sua literatura é devedora dessa latinidade.
    Oliveira Martins, que foi um dos seus primeiros críticos, parte de uma perspectiva muito diferente de Teófilo e faz um paralelismo entre a literatura clássica e a medieval, de tal modo que Teseu seria o Tristão medieval, Lancelot estaria para Édipo, o rei Artur uma velha reminiscência de Hércules e assim sucessivamente
[xxx]. O «celtismo» de Oliveira Martins face à insistência de Teófilo em relação à «raça moçárabe»  também não podia ser aceite. Ambos são fruto da época do romantismo embora as teses se rejeitem e para mais a hipótese do germanismo de Teófilo torna contraditórias as suas conclusões. Na analise de Eduardo Lourenço[xxxi]:

  «a exigência e o radicalismos de Teófilo em matéria de espontaneidade histórica - e por consequência cultural – são de tal ordem que o levam a concluir pela inexistência de uma verdadeira poesia nacional (..,) Portugal nasce adulto, sem infância consciente e divina».

      Mas quando Teófilo escreve «… a Idade Média foi o período da história mais profundamente poético e talvez o último em que a humanidade foi criadora» a influência de Hegel pode estar a informá-lo pois a Reforma religiosa seria aquela revolução em que a liberdade se tornaria consciente e as manifestações do espírito tomariam novas formas.
        É do testemunho vivo do escritor, Gomes Monteiro
[xxxii], que se pode saber como ele, nunca desistiu de escrever com a idade e já com perto de 80 anos, pretendia ainda escrever uma “História Filosófica de Portugal” e a projectava com mais de 15 volumes para a sua edição. A sua capacidade de trabalhar e os seus sonhos tornavam-no visionário de um futuro que nem um jovem imaginaria tão imenso! Tinha sido notável investigador sempre muito determinado e assim permaneceu fiel a si mesmo até ao fim da vida.
    Como fora sempre republicano militante, esta é a seu ver, a solução para a decadência nacional. Assim o vê Machado Pires
[xxxiii], pois encontra na República o desfecho para os problemas da pátria, mas considerando a política como ciência positiva, pela educação do povo, «formando o espírito crítico, fazendo circular ideias, provocando o conflito de opiniões (…) em suma: incompatibilidade entre realeza e civilização». O mesmo autor também concorda com a visão hegeliana de Teófilo quanto às revoluções, como marcha dialéctica da História e esta seria inevitável com os sintomas que encontra no caso português: «miséria pública e decadência geral da nação, (…) congestão do capital nas mãos fraudulentas dos banqueiros, (…) alcances nas repartições de estado, fugas de funcionários, uma alucinação de indignidade[xxxiv] » e a par disto estava a sua veia anti clerical e a ideia de que a «apatia» era o grande mal que permitia a decadência e desagregação nacional. Por isso toda a sua luta pela educação do povo, a busca de uma nacionalidade que foi buscar primeiramente à raça moçárabe, tese que não teve êxito e depois a uma Lusitânia que se reúne com a tradição romana.
  Não admira pois que, em 1910, com 67 anos, seja convidado para Presidente do Governo Provisório, tendo sido mais tarde eleito para o mais alto cargo da Nação, o de Presidente da República! Foi substituir Manuel de Arriaga, seu amigo e Açoriano como ele que, tristemente desiludido com o rumo que a política tomava, desistia do cargo. Fora poeta, sonhador, lutara por uma causa que o apaixonara mas a dura realidade levou Manuel de Arriaga a uma solução em que obedecia mais ao coração e à dignidade e o afastamento da política tomou uma dimensão ética.

    Conta-se acerca de Teófilo que, sendo muito modesto na sua vida social, ia de eléctrico para o Palácio de Belém e que estando um soldado à porta da sua casa, pela honra que mereciam as suas funções, quando estava a chover torrencialmente, Teófilo veio até à rua com toda a simplicidade e chamando o solado de sentinela levou-o para sua casa para se aquecer e tomar chá com ele!

     A morte da esposa deu-se no ano seguinte a ter exercido este cargo. Data dessa época a última carta de sua irmã Maria José que contava então 69 anos e se mostrou muito pesarosa e mesmo doente com a notícia e a situação do irmão agora sozinho no mundo, como ela mesma diz. Desde então viveu ainda mais isolado e entregue às suas tarefas de professor que só abandonou em 1922 e às de escritor que foram até ao dia da sua morte. Vivia do modo mais simples possível e terá mesmo dito: «Dentro de um poço, desde que tivesse os meus livros, uma resma de papel e um lápis, conseguia viver».

    Poucas mais serão as notícias suas que temos em cartas familiares, mas há uma, de 17 de Outubro de 1922, a sua prima D. Eugénia Violante da Câmara Albuquerque, na Ilha de Santa Maria que Mendonça Dias cita:

      «Aproveito esta ocasião para participar à minha Exma. Prima que me acho à distancia de dias da encantadora idade de oitenta anos, o que não sendo vulgar é também uma glória. Neste ano completei cinquenta anos de magistério, festival a que se dá o nome de Bodas de Ouro; foram celebradas com entusiásticos estudos dos meus antigos alunos, de várias gerações escolares, que passaram diante de mim de 1872 a 1922. Neste relógio da vida não tenho corda para larga actividade e vou colhendo as velas ao meu batel, para em porto seguro poder apodrecer sobre a amarra»[xxxv].

  Em 1920, surgiu a obra atribuída a Francisco Maria Supico, “A Mocidade de Teófilo”, que sempre mantivera grande admiração e culto a Teófilo pelos muitos talentos que nele encontrara. Este, por sua vez escrevera acerca do amigo jornalista:

    «Nesta carreira da vida também me consola a ideia de que por nenhum acto meu tenha levado à sua alma uma sombra, o desgosto vago de ter tido fé em um homem que a não merecia. Hoje, na sua velhice, o Supico é mais do que o meu amigo, é o meu juiz; o seu orgulho por mim é a minha maior glória»[xxxvi] .
    Há fortes reservas na veracidade de todo o livro ter sido escrito por Supico, chegando mesmo Tavares Carreiro a considerar que o livro não passa de «uma fraude literária» que procura desmistificar com bastante documentação, mas ao escrever sobre Antero tem a maior admiração e dá uma visão sem condescendência acerca do poeta de “Tempestades Sonoras” quando a ele se refere. Este ensaísta busca a verdade como se fosse um dever moral e assim defende o próprio Antero do que sobre ele escreveu Teófilo.

     Com mais moderação e muita prudência são as observações de Brandão da Luz, no que se refere ao mesmo facto, falando de serem reflexos da juventude vistos na velhice do ilustre Açoriano, mas observa como «os testemunhos de contemporâneos (…) e as cartas que escreveu, principalmente a familiares e amigos, apresentam traços antagónicos duma personalidade, ora a debater-se arrebatado pelo ardor do ódio mais incontrolável, ora a deixar-se abandonar na capitulação dos sentimentos mais comoventes»
[xxxvii].
    Não tinha a sorte de ter uma figura desempenada e forte, nem era senhor de uma presença dominadora, nem de uma voz que prendesse facilmente os auditórios, daí que se tornasse um sábio de gabinete, um homem de grandes planos, especulações, dúvidas e incertezas, interrogando-se sobre os grandes problemas da Humanidade, Deus, o Bem, a Beleza e as realidades políticas. Acreditava no progresso e ironicamente descria da sua sociedade, tudo para ele era uma luta pela vida, em que via inimigos em muitos lados e os amigos rareavam. De facto, Teófilo não tinha a arte de fazer amigos. Este será sempre um espinho que o ferirá toda a vida.

   Nunca voltará à sua Ilha de São Miguel! Teria dito que «ninguém é profeta na sua terra» e em vez de a procurar pensou mesmo em ir para o Ultramar, projecto que depois abandonou. Embora se gabasse de não ter a «doença do Açoreano» que é nada mais nada menos que a nostalgia do mar, dos rochedos no meio do Atlântico que tanto prendem e chamam os que lá nasceram, as cartas desmentem muita vez esse desapego. A saudade aparece em horas de solidão, na procura do mar como uma necessidade de ilhéu que era, nas recordações de festas religiosas que o marcaram, na saudade dos seus, mormente de sua irmã.

    Não cabe neste simples artigo mencionar todas as obras que escreveu o que lhe dá um carácter monumental e um papel incontestável nas Letras e na Política da sua época. Se a influência do positivismo de Comte lhe confere uma característica mais limitada é porque, apesar do êxito desta filosofia, ela tinha os dias contados. Não teve escola e seguidores por mais de uma geração. Todavia politicamente confere um sentido optimista e pragmático ao trabalho de Teófilo Braga. Era o progresso que chegava! Todas as vãs metafísicas desapareceriam com a Sociologia e o homem veria os seus problemas resolvidos numa sociedade que preconizava o Bem de todos e idolatrava a própria Humanidade.

     Era este o sonho de Teófilo Braga. Quando morreu, no dia 28 de Janeiro de 1924, continuava a trabalhar e foi mesmo no seu gabinete de trabalho e à secretária que foram encontrá-lo, nessa manhã distante. Restava o trabalho de uma vida toda e o amor à humanidade, à educação dos povos e o culto do Bem nas suas formas mais elevadas e racionais.

     Foi como historiador literário e doutrinário político que mais se afirmou. Mas a elevada expressão estética que atingiu na obra poética deve ser também recordada. Se isso corresponde apenas a uma fase já seria, por si só, caso para enaltecer Teófilo Braga e considerá-lo como um grande poeta e pensador português que amava entranhadamente a sua Pátria tanto na teoria como na prática. Deixou uma obra que vale ser recordada mais do que por monumentos e citações. Mais visível devia ser o seu estudo e a sua leitura para descobrir um pensador decisivo na literatura portuguesa. Mas, como muitos outros em Portugal, o direito à fama e à glória tem estranhos rumos...

 

 


          NOTAS

 

 

[i] Monteiro, Gomes, Vencidos da Vida – Relance literário e político da segunda metade do século XIX. Ed. Romano Torres. Lisboa, 1944

[ii] Dias, Urbano de Mendonça, - Literatos dos Açores, Vila Franca do Campo, 1933, pp. 113-127.

[iii] Homem, Amadeu Carvalho, - Teófilo Braga, Cartas a Maria do Carmo Barros Leite, (1864-1909), Prefácio, Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, 1994, pp.13-20.

[iv] Dias, Urbano de Mendonça, - ob. cit. pp. 114-115

[v] Homem, Amadeu Carvalho, - ob. cit. .13-20.

[vi] Brandão da Luz, José Luís, -  Minha Freira – Cartas Familiares – Organização, introdução e notas, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1996. pp. 7-27. 

[vii] Idem, ibidem, pp. 25-27.

[viii] Barbosa, Manuel, – Figuras e Perfis Literários, - Uma Antologia, Ribeira Grande, 1983, pp.185-186

[ix] Vilhena, Conceição, Correspondência de Teófilo Braga – Ponta Delgada, 1985, pp. 20-21.)

[x]  Carvalho, Rui Galvão de (Colecção Gaivota, nº.3, 1979. Colecção Gaivota, nº.3, 1979. Vol. 1 pp. 94-98.

[xi] Homem, Amadeu Carvalho, Op. cit, 18

[xii] Homem, Amadeu Carvalho, -  Op. cit. p. 18.

[xiii] - Minha Freira, op. cit. pp-50-51.

[xiv] Idem ibidem, p. 59

[xv] Sampaio, Alberto, In Memoriam de Antero,  p. 13.

[xvi] Diário Oficial do Império do Brasil, 29/1/ 1863.

[xvii] Monteiro, Gomes, Vencidos da Vida – Relance literário e político da segunda metade do século XIX. Ed. Romano Torres. Lisboa 1944 pp. 39-40.

[xvii] Chaves, Castelo Branco,  Vencidos da Vida – Relance literário e político da segunda metade do século XIX. Ed. Romano Torres. Lisboa, 1944, pp. 39-40.

[xviii]  Monteiro, Gomes, op. cit. p 62.

[xix] Barbosa, Manuel, -op. cit. p. 91. ( Escrito no prefácio de “Contos Fantásticos”).

[xx] Chaves, Castelo Branco, Teófilo Braga e o Nacionalismo, p. 24.

[xxi] História da Literatura Portuguesa, op. cit. pp.28-30.

[xxii]Gomes Monteiro, op. cit. pp. 92-93.

[xxiii] Mendonça Dias, Urbano de, op. cit. pp.142-145.

[xxiv] Carreiro, Bruno Tavares, Antero de Quental, Subsídios para a sua biografia, Edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, Lisboa, 1948, 2ª. Vol p. 89.

[xxv] Idem Ibidem, pp. 90-91.

[xxvi] Coelho, Jacinto Prado, Orientações da História Literária em Portugal; Problemática da História Literária, Lisboa, 1961, pp. 50-51

[xxvii] Monteiro, Gomes, op. cit. pp. 97-98

[xxviii] História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga,  Prefácio, Antília, Secretaria Regional de Educação e Cultura, Açores, 1984, p. 8.

[xxix] Idem, ibidem, pp. 8-9.

[xxx] Idem, ibidem, pp14-18.

[xxxi] Lourenço, Eduardo, O labirinto da Saudade, Col. Autores da Língua Portuguesa, Publicações D. Quixote, 2ª edição, 1982, p.154.

[xxxii]  Gomes Monteiro. Op. cit. pp. 117-129.

[xxxiii] Pires Machado, A. M. Bettencourt , “A ideia de decadência na geração de 70”, Instituto Universitário dos Açores, 1980, pp. 191-193.

[xxxiv] Braga, Teófilo, Soluções Positivas da Política Portuguesa, Nova Livraria Internacional, Lisboa, 1879-1880.

[xxxv] Dias, Urbano de Mendonça, op. cit. p. 116.

[xxxvi] Carreiro, Bruno Tavares, Op. cit. Vol. II, p. 348.

[xxxvii] [xxxvii] Brandão da Luz, José Luís,


 

  •  © Lúcia Costa Melo Simas (Texto)  -  Regressar a   " Os "Trabalhos e Dias" "
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  • Actualizado em 11.07.2007
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